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BRASIL - Pode um frade francês acabar com a escravidão do século 21?

William Langewiesche

quinta-feira 21 de janeiro de 2016, postado por Dial

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Estamos em 2015, e mais de 20 milhões de pessoas ainda são mantidas em alguma forma de escravidão no mundo inteiro. Ao viajar nas profundezas da Amazônia, William Langewiesche descobre porque uma degradância indescritível se revela tão difícil de ser enfrentada e encontra um homem de Deus que consagra sua vida à essa luta. [1]

I. Cativeiro

Xavier Plassat é um frade da Ordem Dominicana, um francês que trabalhou durante décadas na Amazônia brasileira e é conhecido pela sua luta contra a escravidão, tal qual ela existe em nosso tempo. A escravidão moderna difere da clássica, aquela em que as pessoas são mantidas como propriedade privada, mas, na medida em que trata as pessoas como ferramentas a serem usadas e descartadas, ela é quase tão brutal e degradante quanto a outra. Atualmente, são talvez 20 milhões de pessoas afetadas, e provavelmente muito mais. Entre elas, relativamente poucas são mulheres aliciadas para a prostituição. Um número maior, de homens bem como de mulheres, são trabalhadores braçais em florestas, campos e fábricas, ou no mar. É possível se deixar prender aos aspectos técnicos da definição. Aqueles que dependem do trabalho de escravos querem uma definição da “escravidão” a mais reduzida possível. O Brasil assume oficialmente uma definição ampla e, por esse motivo, fez mais progressos contra a escravidão do que países semelhantes. Mesmo assim, somente na Amazônia e a todo momento, tem dezenas de milhares de trabalhadores sendo escravizados.

Xavier é o homem que produz os números, orienta a imprensa, adverte as populações mais vulneráveis, bota pressão sobre as agências do governo e, com a ajuda de uma sofisticada rede de vigilância, informa os locais onde operam escravagistas a uma força-tarefa federal especializada, a qual, ao longo dos últimos 20 anos, resgatou do cativeiro 50.000 escravos. Xavier não para. Aos 65 anos, ele é atlético e ágil. Tem cabelos grisalhos, um rosto surpreendentemente gaulês, e olhos azuis penetrantes. Tem um comportamento e um estilo de vida modestos. Tendo feito votos de castidade e de pobreza, vive em uma casa humilde, com outros dois frades, em um vilarejo próximo ao rio Araguaia, uma região onde a floresta amazônica já foi derrubada. Os outros dois frades são sacerdotes. Ele não. Ele é agente de uma organização católica chamada Comissão Pastoral da Terra, conhecida em português pela sigla CPT, na qual coordena uma campanha nacional contra o trabalho escravo. Nos seus tempos livres, ele também acompanha conflitos de terra, pelo lado dos pobres. É um trabalho perigoso em um lugar onde a lei é pouca coisa. Pelo menos 12 dos seus colegas e mais de mil camponeses envolvidos nessa luta já foram assassinados, geralmente sem nenhuma consequência penal. A própria vida de Xavier foi ameaçada. Ele permanece filósofo e não se preocupa com risco para si mesmo.

Mas não é nenhum santo. Estoura de impaciência regularmente e, muitas vezes, fala palavrões. Ele bebe e fuma, embora com moderação. Recentemente eu descobri que ele gosta de dirigir rápido. Era a manhã do nosso primeiro dia juntos, no estado de Tocantins, com nuvens de tempestade em formação no céu. Xavier sentou-se ao volante de um Fiat Uno, pisando no acelerador em estradas de chão que exigiam maior cautela, mas ele estava atrasado para uma reunião em um distante povoado e aparentemente feliz com essa desculpa. Não era bem o homem que eu esperara. Perguntei-lhe se frades são como monges. Ele disse: “Os monges são mais contemplativos. Não são orientados para a ação”. Perguntei-lhe se acredita em Deus e em Cristo. Ele disse que sim, acredita, mas que pode estar equivocado. O que o ocupa não é a promessa de um céu distante, mas como o Cristianismo pode servir a ajudar os pobres em sua luta por vida melhor. Um jornalista em São Paulo, que conhece Xavier há anos, me disse mais tarde: “Xavier, um agnóstico? Penso que ele acredita nas águas e nas árvores. Mais forte do que padre da libertação, que coloca Deus no centro das coisas. No centro, Xavier coloca as pessoas. Às vezes, padre da libertação é ingênuo sobre a vida. Xavier, não. Ele sabe de alegria, bem como de tristeza. Ele não é nenhum candidato ao martírio, porque ele não quer morrer. E os grandes fazendeiros o temem ainda mais porque ele coloca seu cérebro para funcionar”.

O problema que está à sua frente é que a escravidão se encaixa naturalmente na vastidão e na brutalidade do campo brasileiro, com sua ordem social feudal e suas massas camponesas marginalizadas. A escravidão também é parte integrante do processo de desmatamento – a conversão incessante da floresta em fazendas de criação ou de plantação. De sul a norte e de leste a oeste, essa conversão tem-se realizado mediante uma confusão de ocupações de terra – legais e ilegais, ao longo de uma fronteira agrícola que avança e empurra para fora índios e colonos e sua agricultura de subsistência. Ela pode ser mapeada, mesmo sem fotos de satélite, só desenhando os locais de maior concentração de trabalho escravo.

Os proprietários de terras protestam: eles estão a realizar um serviço patriótico, transformando floresta em terra produtiva, e os trabalhadores que eles empregam são acostumados à vida dura e lhes são gratos pelos empregos. Estes argumentos ressoam mundo afora. E é verdade que, no Brasil, existe uma linha tênue entre condições de trabalho normais e aquelas que constituem trabalho escravo. É um caso de escola de como algo inaceitável pode vir a se transformar em algo normal. As pessoas no Nordeste do Brasil, de onde muitos escravos vêm vindo, há muito tempo utilizam a palavra “cativo” para dar uma ideia de seu destino. Mas a escravidão moderna é uma realidade mais severa.

II. A indústria da escravidão

A escravidão, a propriedade exercida sobre alguém, é ilegal em qualquer lugar, exceto aparentemente nos territórios controlados pelo Estado Islâmico, onde foram relatados mercados públicos de escravos. O último país a proibir isso foi a Mauritânia, em 1981. No entanto, na Mauritânia a escravidão permanece uma situação comum. Ela também permanece em uma parte do Saara e do Sahel, no Mali, Níger, Argélia, Chade e Sudão. Ao todo há talvez um milhão de escravos desse tipo no mundo de hoje. Dos 21 milhões de pessoas que as estimativas da Organização Internacional do Trabalho consideram sejam submetidas a trabalho escravo, então falta explicar ainda 20 milhões de escravos modernos. As estimativas da OIT são conservadoras. Outras estimativas sobem até a altura dos 38 milhões.

Os escravos modernos são trabalhadores forçados. Eles são mantidos em cativeiro de uma forma ou de outra e obrigados a trabalhar em benefício de outros. Eles podem ter sido traficados, ou não. Esta sua condição pode ser temporária, mas também pode ser até morrer. Eles habitam um mundo paralelo, por vezes à vista de todos. Um escravo pode ter a aparência de um esqueleto amarrado a uma árvore na Amazônia ou de uma babá em um parquinho em Paris – a gama existente é sem limite. Segundo a OIT, 10 por cento das vítimas são detidas por Estados e por forças militares, 22 por cento são trabalhadores do sexo, e o restante, 68 por cento, estão envolvidos em outras atividades, principalmente econômicas, na agricultura, manufatura, mineração, construção, e no trabalho doméstico. Esses 68 por cento são nosso assunto aqui. Quase a metade desses escravos são mulheres e um número muito grande são crianças. O Ministério do Trabalho dos EUA listou alguns dos produtos relacionados com o seu cativeiro: diamantes provenientes de Angola; roupas da Argentina; peixe seco de Bangladesh; algodão do Benin; gado, milho, amendoim, castanha, cana de açúcar da Bolívia; bambu, feijão, tijolos, jade, palha de palmeira, nozes, arroz, borracha, rubis, gergelim, camarão, cana de açúcar, girassol, e teca da Birmânia; flores artificiais, tijolos, decorações de Natal, carvão, algodão, eletrônicos, fogos de artifício, calçados, roupas, unhas e brinquedos provenientes da China. A lista vai seguindo, em 37 países ao todo, sem contar países como os da Península Arábica, onde os escravos não produzem mercadorias, mas são utilizados principalmente na construção e nas atividades domésticas. A prevalência da escravidão é mais baixa em regiões com economias desenvolvidas e com império rigoroso da lei, mas, se incluirmos casos isolados, a escravidão existe em todos os países, inclusive nos Estados Unidos. Na última primavera, em Los Angeles, um rico casal foi indiciado por tráfico de três mulheres indonésias que afirmaram terem sido aliciadas para a América e mantidas como escravas domésticas. (O casal se declarou inocente). Na América do Sul, os procuradores conseguiram a condenação de empreiteiros em trabalhos rurais que mantinham fisicamente centenas de trabalhadores em regime de confinamento, sob ameaça de espancamento e de morte. A maior parte do problema, no entanto, encontra-se em locais com populações sem menor expectativa e com amplo trabalho informal, onde a corrupção mina a lei e onde a exploração de uma subclasse é aceita como normal.

Na Tailândia, a existência sistêmica da escravidão em navios pesqueiros e em usinas de processamento de frutos do mar tem sido amplamente documentada a partir de várias investigações, entre elas um trabalho excepcional realizado pelo jornal The Guardian. Os escravos vêm principalmente do Laos, da Birmânia e da Camboja. Eles são contrabandeados para o país e vendidos diretamente aos barcos que os mantêm em cativeiro; alguns destes navios ficam no mar anos a fio tirando a possibilidade de qualquer um escapar. As condições a bordo são abismais. Incluem espancamentos e execuções sumárias. Em uma pesquisa intitulada Tráfico de Seres Humanos ao Redor do Mundo, as pesquisadoras Stephanie Hepburn e Rita J. Simon observam que 37 por cento de todos os camarões importados para os Estados Unidos vêm da Tailândia. Eles citam um ex-funcionário do Departamento de Estado que diz: “É essencial que as pessoas saibam com absoluta certeza que o fluxo de camarão que chega ao mercado dos EUA está contaminado por camarões que foram processados pelas mãos de escravos”.

A Rússia é outro ponto quente. O número de escravos ali é incerto, mas, deixando fora o comércio do sexo, ele pode chegar a 500 mil, colocando a Rússia entre as maiores populações de escravos no mundo. O fenômeno se baseia não no costume da escravidão de Estado, antiga neste país, mas na cobiça, no cinismo e na criminalidade, características da sociedade russa nos últimos 25 anos. As vítimas são principalmente estrangeiros aliciados por intermediários. Ao chegarem à Rússia, lhes são confiscados os documentos; eles são colocados para trabalharem na construção civil, na indústria têxtil, na reparação naval, em pedreiras ou na agricultura. Recebeu ampla divulgação a utilização de trabalhadores escravos na preparação dos Jogos Olímpicos de Inverno de 2014, em Sochi.

Escravidão sistêmica? Este é um grande problema no Haiti, bem como no Peru, Gana, República Democrática do Congo, Moçambique, Namíbia, Botswana, Nigéria, Uzbequistão, Catar, Emirados Árabes Unidos, Paquistão e Camboja. E todos estes países são nada se comparados com a Índia. Numa estimativa conservadora, a Índia tem talvez oito milhões de escravos. Eles trabalham em regime de servidão doméstica; na fabricação de tapetes, couro e vestuário; na produção de semente de algodão e no arroz; na mineração de pedra; e nos bordados. Esses escravos são moradores, não são imigrantes. O problema é exclusivo da Índia, intimamente relacionado à mentalidade de castas e se concentra nas populações intocáveis, geralmente conhecidas hoje como Dalits. A escravidão toma geralmente a forma de servidão por dívida na qual as vítimas são obrigadas a oferecer seu trabalho – seja por alguns anos ou por toda a vida, por conta de uma dívida feita algum dia por alguém de sua família. A dívida pode ter sido feita por antepassados ​​e passada para frente; mais comumente ela nasceu da situação de desespero de pais que depois vendem os seus filhos em condições que os obrigam a trabalhar.

Tudo isso é para dizer que o Brasil não está sozinho. Mas ele se destaca como um líder pela tomada de medidas enérgicas, apoiada por instrumentos jurídicos inovadores e, embora o mesmo negaria, Xavier Plassat talvez seja a principal razão para isso.

III. Frei Tito

O Brasil foi construído por escravos, inclusive quatro milhões deles importados da África e um sem-número de índios nativos. Foi o último país do hemisfério ocidental a abolir a propriedade das pessoas, o que ocorreu em 1888: “A partir da data desta lei, a escravidão é declarada extinta no Brasil”. A realidade não foi tão simples. Especialmente no Nordeste rural, onde a terra era concentrada em poucas mãos, massas de camponeses subjugados viviam amarradas à servidão. Depois de três séculos de escravidão, um arranjo parecia coisa normal tanto para ricos quanto para pobres. Nesta parte do mundo, o tempo corria lento. A poeira subia da terra queimada pelo sol, enquanto ao oeste, na floresta nativa, os rios fluíam eternamente. A Primeira Guerra Mundial veio e não provocou nenhuma comoção no local. Em 1926, longe além do horizonte, a Liga das Nações surgiu com sua primeira convenção contra a escravidão: um acordo para abolir a escravidão. Na Amazônia, a vida continuou como dantes. Quatro anos depois, em 1930, a Organização Internacional do Trabalho elaborou uma convenção que proibia o trabalho forçado. A notícia não chegou à Amazônia. Mas nesse mesmo ano, no éter, uma borboleta bateu asas: uma comissão internacional de inquérito sobre a escravidão na Libéria ampliou a definição de “escravo”: não só uma pessoa que pertence a outrem, mas também uma pessoa que trabalha em condições “análogas” a essa mesma condição.

A idade de Xavier Plassat era então menos 20 anos. A redefinição não teve consequências imediatas. Em 1940, quando a idade de Xavier já era menos 10, o Brasil instituiu um código penal que adotou a nova terminologia e proscreveu “a redução de alguém à condição análoga à de escravo”, mas não definiu o que tal condição era. Nada mudou. Os governos subiam e desciam. Em 1950, Xavier nasceu na distante França. Durante a década seguinte, no Nordeste do Brasil, os camponeses formavam ligas em aliança com o Partido Comunista e começavam a se mobilizar para obter a expropriação e redistribuição das grandes propriedades. Essa aspiração subversiva colocou em pânico os poderosos e contribuiu para levar a um golpe de Estado, em 1964. Por conta do medo do comunismo, o golpe foi apoiado pela Igreja Católica e pelos Estados Unidos. Um regime militar retrógrado usou tortura e censura para dominar o Brasil durante as duas décadas seguintes.

Uma das primeiras iniciativas do regime foi a conquista da Amazônia, penetrando-a com estradas e incentivando assentamentos permanentes. O esforço foi apelidado em termos militares com o nome de “Operação Amazônia” e foi apresentado como questão de segurança nacional. Havia então um sentimento, como ainda tem agora, de que, sem uma forte presença brasileira, essa terra poderia sofrer invasão por parte de cúpidas forças estrangeiras. O regime acreditava que o programa iria estimular a economia, abrindo espaço para a atividade de grandes criadores de gado, e que também iria aliviar a pressão pela reforma agrária, ao distribuir aos camponeses pequenas parcelas de selva que não interessavam a ninguém. Mas não chegaram tantos colonos pobres quanto se esperava e, após terem derrubado suas parcelas de selva, muitos deles não conseguiram se manter. Para sobreviverem, se tornaram lavradores. As grandes corporações e os ricos começaram a limpar a floresta, no atacado, colocando pistoleiros para remover quem estivesse no seu caminho. Não havia lei alguma. Não havia ordem.

A exploração dos pobres constituiu-se no real fundamento do desenvolvimento da Amazônia. Por volta de 1970, isso ficava claro. Depois de anos na África, um sacerdote espanhol chamado Pedro Casaldáliga havia se mudado para a fronteira agrícola, no estado do Mato Grosso, na isolada cidade ribeirinha de São Félix do Araguaia. Sentiu um choque ao se deparar com a opressão que encontrou. Mais de uma década mais tarde, em entrevista com a jornalista Jan Rocha, ele disse: “Em nossa primeira semana em São Félix, quatro crianças morreram e foram levadas por trás da nossa casa até o cemitério, em caixas de papelão que pareciam caixas de sapatos. Nós estávamos a enterrar tantas crianças ali – cada família costuma perder três ou quatro crianças – e tantos adultos, mortos ou assassinados, muitos deles mesmo sem caixão, e alguns mesmo sem nome”. Os índios da região estavam sendo retirados do seu território. O que prevalecia eram condições miseráveis impostas nas novas grandes fazendas de gado. Tudo isso estava acontecendo na calada da noite, sem nenhuma divulgação na imprensa, e com o silêncio da Igreja. [Dom] Pedro escreveu uma carta pastoral na qual denunciava os horrores e, tomando emprestado do código penal, aplicava o termo “condições análogas à de escravo”. “Aqui está a definição que vocês ignoraram”, dizia Pedro. O regime militar respondeu proibindo a Carta [do bispo], mas cópias passaram a circular.

Naquele momento, Xavier não sabia nada disso. Ele era um militante, católico e estudante em Paris, na Sciences Po, escola da elite, onde se dedicava à economia, gestão e finanças, no intuito de aplicar esse conhecimento às causas da esquerda. Dois anos antes, ele tinha ido às ruas, em confrontos com a polícia, durante a quase-revolução de maio de 68. Agora ele estava ocupado demais com seus estudos para se preocupar com a escravidão, e muito menos com a Amazônia.

Mas pelo visto, o evento que acabaria por levá-lo ao Brasil já havia acontecido. Era a prisão, em São Paulo, em 1969, de um jovem, frade dominicano, chamado Tito de Alencar Lima, conhecido como Frei Tito. Ele era suspeito de ter ligações com guerrilheiros de esquerda e foi severa e repetidamente torturado pelo famoso Departamento de Ordem Política e Social, sob a direção de um sádico com cara de bebê, chamado Sérgio Fleury. As sessões de tortura quebraram Frei Tito que conseguiu, no entanto, contrabandear para fora um texto descrevendo os métodos da tortura. Certa vez, escreveu ele, um torturador tinha entrado em sua cela vestido com traje religioso, dizendo: “Você é um padre homossexual daqueles sujos. Nós vamos lhe dar a Comunhão. Abra a boca”. Ele inseriu fios elétricos e começou a dar choques.

A nota contrabandeada do Frei Tito causou um escândalo. Em 1971 ele foi deportado para o Chile e, de lá, seguiu fugindo para Roma e depois para Paris, onde os dominicanos ofereceram-lhe abrigo. Mas ele estava em um estado de permanente ansiedade e de paranoia. Ele via Fleury em todo lugar. Em 1973, os Dominicanos o levaram até um convento tranquilo, acima de um pequeno vale perto de Lyon, onde um frade jovem, perspicaz e idealista, o acolheu e tornou-se seu amigo.

IV. O bispo vermelho

Este frade era Xavier Plassat. Ele havia se formado na Sciences Po, havia conseguido outro grau em Desenvolvimento do Terceiro Mundo, e se juntara à Ordem Dominicana como forma de assumir compromisso e de agir na sociedade. Ele era fascinado por Frei Tito, o qual, em seus momentos de lucidez, tinha muito a dizer sobre a teologia e sobre situação no Brasil. Mas Tito continuava desmoronando. Repetidamente ele sumia e Xavier tinha que sair à procura dele pelas ruas de Lyon ou nos campos da redondeza. Uma tarde, Xavier retornava de uma viagem e encontrou Tito sentado debaixo de uma árvore, no convento, tremendo, chorando e balbuciando de forma incoerente. Os outros frades diziam que ele tinha ficado aí durante o dia todo, recusando-se a adentrar a casa ou a comer ou a beber. Xavier sentou-se e permaneceu com ele horas a fio. Finalmente, percebeu que, na alucinação de Tito, o sádico Fleury havia chegado: estava num vilarejo que ficava no outro lado do vale e, dali, estava dando ordens ao Tito, proibindo-o de entrar no convento e ameaçando torturar sua família. Xavier tentou dissipar o delírio, mas não conseguiu. Finalmente Xavier se dirigiu diretamente a Fleury, dizendo: “Mas, Sr. Fleury, certamente o Sr não se oporia se Tito tivesse um cafezinho?” Relutante, Fleury concordou. Xavier misturou um comprimido de Valium ao café e o deu a Tito. O Valium teve pouco efeito. Começou a chover e o sol se pôs. Eles ficaram juntos debaixo da árvore durante toda a noite. De manhã, Xavier levou Tito para um hospital psiquiátrico. Na sala de espera, Tito ficou de pé, de costas para a parede, com os braços estendidos. Uma enfermeira perguntou o que estava fazendo. Ele disse: “Vá em frente. Você pode atirar em mim. Estou pronto para morrer”. A América do Sul pode ser aquela ópera. Era 12 de setembro de 1973, um dia após o golpe de estado no Chile. Dez meses mais tarde, Tito entrou em uma floresta e se enforcou. Ele tinha 28 anos quando morreu. Xavier tinha 24. Separando os parcos pertences de Tito, ele encontrou papéis repletos de pensamentos tristes. Um dizia: “É melhor morrer do que perder a vida”. Em São Paulo, a única informação permitida [pela censura] foi um aviso no jornal da arquidiocese declarando que Frei Tito havia sucumbido a uma doença contraída no Brasil.

Na época, Xavier tinha um emprego: ele estava trabalhando como economista para uma empresa de consultoria que fazia auditorias e análise financeira para sindicatos franceses de trabalhadores – uma experiência que mais tarde viria a influir na sua luta contra a escravidão. Tito o havia afetado profundamente e o Brasil não saia da sua mente. No início dos anos 1980, a Igreja havia se voltado contra os militares e o descontentamento popular estava fragilizando as bases do regime. No final de 1982, a família de Tito pediu que seus restos mortais fossem repatriados e a Igreja avaliou que o clima estava favorável. Xavier foi convidado para cuidar da exumação e acompanhar o retorno do caixão ao país. Ele articulou uma missa para Tito na catedral de Lyon e se colocou em busca de um brasileiro que pudesse presidi-la e falar sobre a situação no Brasil. Nas terras centrais do Brasil, acabou localizando um bispo fluente na língua francesa, de nome Tomás Balduíno, que era um combativo defensor dos camponeses sem-terra. Tomás era mais um Dominicano e, acreditem, um dos homens que fundaram a Comissão Pastoral da Terra. Ele era conhecido como o Bispo Vermelho. Era também piloto. Ele tinha um pequeno avião com o qual voava para visitar comunidades [indígenas] isoladas na Amazônia. Ele tinha escapado à prisão em parte porque a CPT trabalhava sob a égide da Conferência Nacional dos Bispos, que o regime não se atrevia a confrontar.

Xavier e Tomás acompanharam o caixão da França até São Paulo. Era março de 1983. O contraste com a França era brutal. Uma missa e uma manifestação em memória de Tito foram realizadas na Catedral de São Paulo, então cercada pelos veículos blindados das forças de segurança. Após o evento, Xavier levou os restos de Tito para sua cidade natal de Fortaleza, para o enterro; em seguida, foi até às bases de dom Tomás, no centro oeste do Brasil, na bela cidade colonial de Goiás, no estado de mesmo nome. Com seu aviãozinho, dom Tomás passou a semana seguinte mostrando a Xavier a região, apresentando-lhe o trabalho da Comissão e explicando algumas das realidades do campo, onde havia violência por toda parte. De Goiás, Xavier pegou um ônibus até o limiar da Amazônia, naquilo que desde então se tornou o Estado de Tocantins, onde se encontrou com um advogado radical e frade dominicano chamado Henri Burin des Roziers: ele estava trabalhando com a CPT, num serviço arriscado, ajudando colonos a resistirem contra a investida da agricultura comercial e contra a grilagem patrocinada pelo governo. Os conflitos eram intensos. Assentamentos queimados recheavam a paisagem. As pessoas estavam lutando por suas vidas. Quando Xavier voltou para casa, os desafios na França pareceram pequenos em comparação: eram sindicatos fazendo manifestações para um aumento de 3 por cento por conta de uma inflação de 5 por cento. Depois de uma segunda viagem ao Brasil, alguns anos mais tarde, ele decidiu que queria contribuir. Levou um tempo para desengatar e partir da França. Em 1989, ele voava para o Brasil para se juntar à briga de faca na floresta.

V. No lugar de um morto

Eis uma história improvável: um economista francês veste o hábito branco, some na Amazônia e se torna um dos estrategistas mais influentes deste tempo na luta contra a escravidão. Embora estivesse sabendo da escravidão no Brasil – vários casos haviam sido revelados e amplamente divulgados, inclusive em uma grande fazenda de propriedade da Volkswagen – Xavier não estava pensando em escravidão quando deixou a França. Só com a defesa dos posseiros, a CPT já tinha agenda cheia. Xavier chegou logo depois das primeiras eleições livres em décadas. Foi enviado para morar numa ponta extrema do Tocantins, ao extremo norte, uma área formada pela confluência de dois rios e conhecida como Bico do Papagaio, por conta da sua forma. Três anos antes, um agente regional da CPT, um padre jovem, espírito agudo, chamado Josimo Morais Tavares, havia sido morto a tiros, na porta do escritório da Comissão, porque defendia os direitos dos posseiros. Xavier havia conhecido Josimo durante uma de suas viagens anteriores ao Brasil e sabia que havia aquela expectativa dele ser morto. O trabalho de Xavier agora seria pegar a luta aonde Tavares havia parado e, se possível, permanecer vivo.

Com o tempo, a escravidão impôs se à sua atenção. Gastava um dia de viagem até a fronteira agrícola, ao oeste: uma linha norte-sul atravessando Mato Grosso e Pará. Por volta de 1992, os agentes da CPT começaram a encontrar, em números crescentes, trabalhadores que haviam fugido do cativeiro em fazendas de gado e em carvoarias. Traumatizados, sem dinheiro, e com medo por suas vidas, eles procuravam a Comissão por causa de sua reputação de ajudar os pobres. Quando os fugitivos chegavam, os agentes os alimentavam e os abrigavam por algum tempo, e tentavam organizar o seu retorno para casa. No início, parecia que nada mais poderia ser feito, uma vez que ir às autoridades não surtia nenhum efeito.

Em 1993, a CPT já tinha uma quantidade suficiente de casos concretos para perceber que o Brasil estava enfrentando um problema sistêmico. Como economista, Xavier fez o que sabia fazer. Começou a coletar, organizar, quantificar e analisar os dados. Seu projeto cresceu a partir daí. Hoje já tem 32 agentes espalhados por todo o país, principalmente em municípios do interior da Amazônia. Quando os trabalhadores vêm para um deles, queixando se de terem sido escravizados, os agentes os ajudam a responder a um longo roteiro de questões. Procura-se reunir todas as informações pertinentes, inclusive quanto à presença de homens armados ou aos detalhes da localização, que são incrivelmente complexos. A localização é difícil por causa da ignorância dos trabalhadores: eles não têm GPS e não sabem sempre ler ou desenhar um mapa. Uma vez preenchido o questionário, os agentes mandam por e-mail simultaneamente para Xavier e para o Ministério do Trabalho. Às vezes, são várias denúncias por semana.

Ao começo, no início dos anos 1990, a rede de vigilância da CPT era rudimentar e o trabalho desanimador. O Brasil recusava-se a admitir a existência do trabalho escravo. Xavier era um desconhecido. Os casos enviados ao governo não obtinham resposta alguma. Em reação, a CPT lançou uma Campanha, com vários focos: lobby junto a políticos federais, mobilização de trabalhadores, conversa com jornalistas, redação de consistentes relatórios. Era muito tempo passado no telefone e muito tempo no computador. Para constranger o governo e denunciar sua inação, Xavier viajou para o exterior; foi às Nações Unidas, na Organização Internacional do Trabalho e na Organização dos Estados Americanos.

Pela sua dimensão e a potência que representa, o Brasil é extremamente sensível quando sua reputação está em jogo. Com Xavier empurrando, a pressão foi sentida. Em 1° de janeiro de 1995, um novo presidente tomou posse, Fernando Henrique Cardoso. Cardoso era um intelectual – professor de sociologia na Universidade de São Paulo – que chegara a escrever um tratado acadêmico sobre a servidão por dívida na Amazônia. No primeiro semestre do ano de sua administração, ele declarou durante um “Café com o Presidente”, um programa semanal de rádio, que o trabalho escravo era uma realidade no Brasil, e elogiou o trabalho da Comissão Pastoral da Terra. Era uma grande vitória. Dois meses depois, veio outra: Cardoso anunciou a criação de uma força-tarefa do Ministério do Trabalho, armada, cujo único propósito seria de resgatar escravos e acabar com trabalho escravo. A força-tarefa seria conhecida como o Grupo Móvel. Ela realizaria fiscalizações por toda parte no país, a partir das denúncias que a CPT estava repassando. As equipes seriam lideradas por auditores fiscais especializados – todos eles advogados – e seriam acompanhadas pela polícia federal. Com a presença de procuradores, poderia se cobrar multas e instruir acusações criminais.

Ao longo dos anos, a rede de Xavier forneceu quase metade das denúncias de trabalho escravo apresentadas ao governo. Em 1997, a CPT lançou formalmente uma Campanha nacional contra o trabalho escravo, com Xavier no leme. Mais ou menos na mesma época e paralelamente, a Comissão empreendeu ações visando a frear o tráfico desde sua origem, alertando as pessoas em situação de maior risco, entre elas muitas analfabetas. Xavier organizou apresentações destinadas às comunidades e às igrejas. Foram distribuídos panfletos e cartazes levando um personagem de quadrinho que carrega uma enxada e aponta para seu olho, ao lado do slogan “Abra o olho para não virar escravo!”. A campanha começava a tomar força.

VI. “Ninguém vai se importar”

Xavier me apresentou a um ex-escravo cuja experiência ilustra a realidade: um homem franzino de 29 anos, de nome Elenilson da Conceição, que nasceu em uma família sem-terra, no empobrecido Nordeste do Estado do Piauí. Seu pai fazia tijolos de adobe; sua mãe era costureira itinerante, viajando a pé, vendendo roupas de porta em porta. Quando tinha 12 anos, Elenilson abandonou a escola para ajudar na fabricação de tijolos. Três anos depois, seu pai ficou doente demais para trabalhar e Elenilson continuou sozinho. Quando estava com 19 anos, uma tarde, seu tio apareceu com um estranho que estava recrutando peões para uma fazenda na Amazônia, a cerca de 1.500 quilômetros de distância. O estranho era um agenciador de trabalhadores do tipo conhecido como gato. Ele não agia diretamente pelo proprietário em si, mas para empreiteiros contratados para realizar o serviço. Era típico. Na realidade, ele era um negociador de escravos. Elenilson poderia ter se perguntado por que a fazenda procurara tão longe para recrutar trabalhadores, mas ele era um simples oleiro e era atraído pela oferta: o serviço proposto era o roço de juquira, em pastos oriundos de desmatamento. Transporte, alojamento, ferramentas e comida seriam fornecidos. Para efeito de regularização da contratação, as carteiras de trabalho seriam assinadas imediatamente ao chegarem na fazenda. E os ganhos, embora calculados com base na superfície roçada, seriam maiores do que o salário mínimo nacional. Além disso, se Elenilson quisesse um adiantamento agora para ajudar no sustento da sua família, bastaria informar o valor e o gato iria pagá-lo na hora. Elenilson combinou o equivalente a US$ 150. Embora não soubesse, acabara de definir o preço a pagar pelo resgate da sua vida. E isso era mais ou menos o preço atual de um escravo, mundo afora.

Elenilson partiu de sua cidade natal com um grupo de 12 trabalhadores. De ônibus fretado, viajaram durante dois dias e meio até uma precária cidade de fronteira, chamada Santana do Araguaia, no sul do Pará e, de lá, por mais 100 quilômetros, até o meio do nada. Ali o ônibus parou e dois homens chegaram numa caminhonete, dando ordens ao grupo para subir na traseira de um pequeno caminhão de gado. Os dois homens eram os encarregados da fazenda. O caminhão de gado percorreu uns 15 quilômetros na estrada, quando cortou para uma pequena trilha de terra e seguiu por 50 ou 60 quilômetros até não poder mais continuar, por conta da lama e da água. Ao desembarcar do caminhão de gado, Elenilson encontrou-se em meio a uma floresta densa e enfumaçada, sem nenhum sinal de fazenda ou de qualquer coisa como uma juquira. Os encarregados portavam carabinas e espingardas. Eles distribuíram foices e ordenaram que os homens abrissem um caminho para frente, estendendo a trilha por mais cinco quilômetros. Os homens estavam com fome e sem nenhum alimento. Um segundo caminhão chegou com lonas de plástico destinadas à construção de abrigos. A alimentação para os dias seguintes veio junto com motosserras. Os trabalhadores imaginavam que a comida seria distribuída para eles, mas não foi. Os encarregados os mandaram cortar tábuas tiradas das árvores derrubadas, para construir um barraco de madeira. Eles pensaram que o barraco era para eles, mas era para ser a sede da fazenda e da cantina onde se vendia alimentos e suprimentos aos trabalhadores. Tendo passado vários dias sem comer, eles cederam e começaram a comprar comida fiado.

Aos poucos, tornou-se evidente que esta era uma grande empreita, com pelo menos uma centena de homens trabalhando em equipes espalhadas na vasta floresta. Os patrões se mantinham distantes dos trabalhadores, andando armados a toda hora. Eles desumanizavam os homens, recusando-se a usar seus nomes. Chamavam-nos por seus estados de origem. Elenilson virou “Piauí!”, enquanto outros se tornavam “Maranhão!” ou “Pernambuco!”. Eles trabalhavam de sol a sol, seis dias por semana. Eles viviam à base de arroz e feijão. Aos domingos, cozinhavam carne em grandes baldes que haviam contido veneno. Eles tiravam sua água de beber de uma poça de água estagnada e a armazenavam em baldes do mesmo tipo. O banheiro era um buraco que escorria no chão.

Após um mês disto, eles foram até o homem que eles tinham identificado como o gerente da fazenda. Eles pediram a assinatura de suas carteiras de trabalho, como a lei exige. O gerente se recusou. Eles pediram para ser pagos. Ele disse que a situação havia mudado e que os salários seriam um quarto daquilo originalmente oferecido. Porém, quando perguntaram pelo dinheiro, disse-lhes que não haveria dinheiro algum, porque ainda não tinham trabalhado o suficiente para pagar a sua viagem de ônibus, quanto menos a comida e os suprimentos que tinham comprado fiado. Quando se retiraram, estavam em estado de choque. Era óbvio que tinha que ir embora, mas, para isso, eles teriam que mandar uma mensagem às suas famílias pedindo que enviassem dinheiro para liquidar as suas dívidas e pagar o ônibus de volta para casa. Eles voltaram para o gerente e pediram-lhe para fazer uma chamada telefônica. Ele se recusou e disse que não iria enviar mensagem, tão pouco. Pediram-lhe para mostrar exatamente o que deviam na cantina da fazenda. Descobriu-se que havia dois tipos de contas: uma individual para ferramentas e artigos diversos, e uma coletiva para a alimentação, e que os preços cobrados eram duas ou três vezes maiores que o normal. Elenilson se desesperou de nunca mais voltar a ser livre. Um homem disse que eles tinham que fugir. O gerente ouviu-o e disse: “Piauí, você imagina que é fácil fugir desta fazenda? Você está errado. A próxima fazenda que você adentrar lhe devolverá para nós. E então nós podemos matá-lo. E ninguém se importará”.

Passaram se meses. Então, de repente um dia o gerente chegou com dois homens armados ao seu lado e ordenou que os trabalhadores subissem em um caminhão. Ele disse que estava mandando-os de volta para casa. Alguém tinha fugido e denunciado a fazenda, e o Grupo Móvel estava conduzindo uma operação no lado mais distante da propriedade. Os trabalhadores disseram: “E nossos salários?”. Ele prometeu pagá-los na rodoviária, e assim fez. Ladeado por seus capangas, ele distribuiu envelopes, avisando aos trabalhadores para não abri-los até que estivessem no ônibus. Totalmente subjugados pelo medo, cumpriram a ordem e, uma vez a bordo, descobriram que os pagamentos – US$ 7 aqui, US$ 5 ali – não poderiam sequer cobrir o custo da comida durante a longa viagem de volta para casa.

Logo após seu retorno em casa, Xavier Plassat e a Comissão entraram em ação para ver o que poderia ser feito, especialmente para prevenir eventual reincidência – a possibilidade de que as mesmas pessoas voltem novamente a cair na escravidão. Xavier fala hoje desta intervenção específica como de um sucesso. Depois de pressionarem durante anos, os trabalhadores conseguiram do governo, em 2011, a aprovação da desapropriação de uma propriedade para nela assentar os ex-escravos. Assim poderiam garantir sua subsistência como agricultores. Elenilson continua extremamente pobre. Perguntei-lhe como ele podia ter certeza que, se algum dia lhe fosse oferecido outro emprego na Amazônia, este seria legítimo. Ele disse que nunca mais vai correr esse risco. Ele disse: “Naquela época, nenhum de nós teria chamado isso de trabalho escravo. Nós pensávamos que a escravidão havia sido abolida. Nós pensávamos que a escravidão significava correntes. Somente agora sabemos que aquilo era escravidão. E este conhecimento ajuda”.

VII. A lista suja

Em 1998, a Comissão Pastoral da Terra juntou suas atividades no Tocantins num único escritório, na pequena cidade de Araguaína, um lugar áspero que havia se tornado um ponto de trânsito para trabalhadores na rota do trabalho escravo. Depois de tantos anos no campo, a mudança foi dura para Xavier. Ele morava sozinho, em uma pequena casa em frente a uma igreja barulhenta, repleta à noite de adoradores em êxtase, e de um bar com músicas estridentes que começavam aonde a igreja terminava, e festejava até o amanhecer. Em casa ele usava protetores de ouvido. Foi uma época frustrante. Trabalhava em estreita colaboração com o Grupo Móvel, mas as fiscalizações acabavam frequentemente em fracasso. O problema fundamental era que a lei era tão vaga que era quase impossível aplica-la. “Condições análogas às de escravo”? Que condições exatamente eram aquelas? Na prática, os fiscais do trabalho só podiam constatar trabalho escravo se descobrissem provas de privação física de liberdade ou de servidão por dívida. Isso era difícil de acontecer, porque os escravos temiam as consequências que poderiam sofrer se informassem sobre seus patrões. Frequentemente, o Grupo Móvel não podia fazer nada, a não ser autuar algumas infrações às leis trabalhistas e ir embora, deixando à sorte os trabalhadores. Mesmo que tivessem provas suficientes para libertar alguns escravos, o escravagista simplesmente aguardava a saída dos fiscais do Grupo Móvel e, em seguida, dava seu jeito para arranjar outros mais.

Em Brasília, os fiscais começaram a pleitear em favor de uma mudança. Eles queriam uma nova definição legal do trabalho escravo que lhes permitisse resgatar muito mais pessoas e retira-las imediatamente das fazendas. Passei vários dias com um coordenador do Grupo Móvel, um fiscal de São Paulo chamado André Roston, 34 anos, barbudo. Ele estava fazendo fiscalizações no Tocantins. Ele disse: “Estamos vendo um empregador tratar as pessoas como coisas. Como uma mera ferramenta. Ou pior, como algo que nem precisa ser cuidado. Não é que o empregador esteja cometendo determinadas infrações. É que ele não está cuidando – nem um pouco – dos trabalhadores”. A solução que os fiscais propuseram derivava diretamente da Constituição brasileira, cujo texto declara: “Ninguém será submetido à tortura nem a tratamento desumano ou degradante”. O que os fiscais queriam era uma definição da escravidão que incluísse as “condições degradantes”.

Em 2003, toma posse um novo presidente, um homem de esquerda: Luiz Inácio Lula da Silva. Lula vinha da camada mais baixa da sociedade brasileira. Ele havia abandonado a escola depois da quinta série e trabalhou como engraxate, antes de achar um emprego numa fábrica e de subir as fileiras do sindicato. Ao que tudo indicava, ele poderia ser um aliado, e ele foi. Em dezembro de 2003, quando, em outro mundo, os Estados Unidos começaram o cerco do Iraque – o governo brasileiro alterou o Código Penal para dar aos fiscais do Grupo Móvel a definição que precisavam. Daí em diante, “condições análogas às de escravo” significava:

– 1. Cativeiro.

– 2. Servidão por dívida.

– 3. Jornada exaustiva.

– 4. Condições degradantes.

Qualquer um destes elementos agora bastava para definir o trabalho escravo, embora, na prática, todos os quatro fossem geralmente presentes. Os três primeiros, no entanto, exigiam a cooperação das vítimas – confusas e vulneráveis, enquanto que o último podia ser avaliado de forma independente pelos próprios fiscais durante a operação. Este era a verdadeira importância das “condições degradantes”. Tratava-se mais de uma questão prática do que de uma questão ética. E logo funcionou.

Centenas de denúncias de trabalho escravo passaram a fluir para a CPT. No primeiro ano após a nova definição, o número de escravos resgatados pulou para 5.000. Como os números cresciam, os fiscais tiveram que fazer escolhas cada vez mais árduas sobre quais denúncias tratarem e quais ignorarem. Para Xavier, o critério de triagem parecia óbvio: fiscalizar os casos envolvendo os maiores números de trabalhadores, ou onde as condições fossem as piores. Se o governo demorasse para atender, Xavier ficava na sua cola. Certa vez, deparou-se com provas de que havia escravos em duas fazendas do sul do Pará e que três deles haviam sido baleados e mortos, sendo em seguida devolvidos às suas famílias com a cínica justificativa de que tinham morrido em acidentes. Tendo visto os cadáveres e os ferimentos por balas, Xavier cobrou ação do governo. Nada aconteceu. Mais quatro escravos foram mortos. Xavier continuou pressionando, perguntando quantos tinham que morrer. Finalmente, as fazendas foram fiscalizadas, os escravos ainda no local foram libertados, e um procurador entrou em cena com mandados de prisão contra 10 suspeitos de assassinato – dois fazendeiros e oito de seus capangas. Os fazendeiros fugiram. O que se seguiu foi uma história complicada, incluindo a entrega voluntária do mais violento dos dois fazendeiros e sua posterior fuga da prisão. Houve uma tentativa de assassinato fracassada contra o procurador da república. Xavier foi informado que ele e dois dos seus colegas da CPT haviam sido marcados para morrer. Na Amazônia, tais ameaças sempre são levadas a sério. Os dois colegas de Xavier foram afastados da região. Xavier permaneceu.

Ao redor, a violência era em todo lugar. Em 2004, três fiscais do Grupo Móvel e seu motorista foram emboscados e mortos depois de cometer o erro de realizar uma fiscalização sem proteção policial. Na sequência, as equipes de fiscalização foram reforçadas. Em 2005, foi a vez da CPT: um dos seus membros, uma freira americana naturalizada brasileira, chamada Dorothy Stang, foi morta com seis tiros, quatro deles na cabeça, porque ela tinha desafiado um certo fazendeiro na fronteira agrícola do Pará. O assassinato de Stang foi amplamente divulgado por causa de sua origem norte-americana, e os assassinos foram condenados à prisão, mas centenas de crimes igualmente hediondos não mereceram nem notícia. Analisando os números, Xavier pesquisou mais de mil assassinatos na região Norte e descobriu que apenas 8 por cento deles tinham resultado em alguma ação do Estado brasileiro.

Quanto ao risco voltado para si mesmo, ele tão somente continuou fazendo seu trabalho. Na estimativa do governo, 25.000 trabalhadores rurais estavam entrando a cada ano no ciclo da escravidão. Resgatar 5.000 deles em um ano significava que o Brasil sempre estava ficando para trás. Para mim, Xavier comparou isso à tentativa de secar o oceano com um balde de água. No entanto, o trabalho de resgate era um imperativo moral, uma resposta emergencial que tinha que ser continuada, conquanto se fizesse ações em outras frentes.

Foi do lado da oferta, onde estão operando grandes empresas, que os passos mais significativos foram dados. Xavier apoiou a ideia. Em 2004, após a ampliação da definição legal do trabalho escravo, o Ministério do Trabalho começou a publicar uma “lista suja” das pessoas e das empresas conhecidas por terem usado o trabalho escravo. No seu auge, a lista continha quase 600 nomes. Qualquer nome incluído na lista ali ficava por pelo menos dois anos. Aí via seus negócios minguarem, tendo seu acesso dificultado ou tornado impossível a novos empréstimos. Mais importante, a lista podia contagiar outros que ficassem por perto: empresas que fizessem negócios com escravagistas corriam o sério risco de serem contaminadas. Elas se tornariam culpadas por associação, com graves danos para a sua reputação: corte de crédito, suspensão de suas relações comerciais internacionais, queda no preço de suas ações. Por medo disso, até o momento mais de 400 empresas, que representam quase 30 por cento do produto nacional bruto do Brasil, aderiram a um Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo, prometendo manter-se livres do contágio.

VIII. O adversário em batalha para o retrocesso

Mas nem tudo está bem. Em dezembro de 2014, o Supremo Tribunal Federal suspendeu a publicação da Lista Suja após descobrir erros técnicos no texto que a regulamenta. Providências foram tomadas para atender às preocupações do Tribunal, mas, por enquanto, a lista permanece em compasso de espera. Enquanto isso fica difícil saber o que continua acontecendo lá na sombra. A escravidão na Amazônia não está prestes a terminar. O fiscal André Roston mencionou para mim que o Grupo Móvel parece estar gastando muito mais tempo a procurar em lugares errados, e realizando menos em termos de resultados. Xavier estava consciente do fenômeno, porém sem saber como explicar. Estávamos sentados em uma mesa, na pequena casa onde ele vive agora. A casa fica ao lado de uma igreja em um tranquilo vilarejo chamado Aragominas, em meio a morros e campos, a cerca de 40 quilômetros a oeste da sede da CPT em Araguaína. Navegando entre os dados num computador já bem gasto, Plassat disse: “O que temos observado ao longo dos últimos três anos é uma redução considerável do número de trabalhadores que procuram a Comissão para pedir ajuda”. Ele percorreu os dados, município por município e, em seguida, propôs uma análise: “Isso pode significar pelo menos três coisas. Uma delas é que eles encontraram outras instituições para ajudá-los, particularmente os procuradores do trabalho. Ou pode ser que o trabalho nas regiões nas quais se usava muito trabalho escravo não existe mais com aquela intensidade. Ou pode ser que o trabalho escravo se mudou para áreas mais remotas, onde a nossa Comissão não tem presença forte”.

Eu disse: “Ou pode ser que seus trabalhos estão tendo êxito”.

Ele afastou essa possibilidade: “Sim, claro! Eis a boa explicação!”

Essa explicação satisfatória já ganhou crédito em Nova York, Washington, Londres e Genebra. Xavier tornou-se uma pessoa famosa por uma razão. Desde 2005, ele recebeu prêmios internacionais, inclusive um do Departamento de Estado dos EUA. Os prêmios estão a juntar poeira em seu escritório, mas servem como forma de proteção. Ele viaja diariamente 40 quilômetros para ir ao seu escritório, numa pequena motocicleta Suzuki, da qual já caiu. O trajeto torna-o especialmente vulnerável a ataques. Mas o assassinato de Xavier já não pode ser feito na escuridão. Enquanto isso, a Organização Internacional do Trabalho está avançando em direção à aceitação das “condições degradantes” como uma característica da escravidão moderna, e aponta o Brasil como o principal modelo para combater o problema.

Mas Xavier tem razão em não reivindicar o sucesso. Mesmo que o número anual de pessoas a caminho da escravidão tenha caído pela metade, ou em dois terços – o Brasil está agora correndo risco de perder terreno. De quatro anos para cá, cresceu um lobby do agronegócio que bota pressão em Brasília contra os abolicionistas, empurrando para o retrocesso. Este lobby é aliado a um movimento do tipo Tea Party e se tornou uma força no Congresso brasileiro, aproveitando-se do desencanto com a atual presidente, Dilma Rousseff, enquanto a economia tem entrado em colapso. O movimento quer remover as regulamentações ambientais e florestais, desregulamentar o local de trabalho, permitir a terceirização sem limite e reduzir a responsabilização dos fazendeiros pelas violações cometidas por seus terceirizados. Parte disso já ocorreu. Ninguém está propondo a legalização do trabalho escravo, claro. Mas um grande esforço está em curso para eliminar da sua definição as “condições degradantes” e a “jornada exaustiva”.

Roston disse: “Eles afirmam que somos arbitrários e que saímos por aí caracterizando trabalho escravo com base em infrações mínimas, mas isso não é verdade”. Estávamos voltando de uma fiscalização em uma fazenda distante e precária, onde Roston tinha encontrado várias infrações, inclusive o trabalho infantil, mas nada que se pudesse qualificar como trabalho escravo. Ele disse: “Por exemplo, ‘jornada exaustiva’ não é simplesmente que você esteja cansado no final da jornada. É que você trabalha uma jornada tão longa e tão dura, dia após dia, que você não consegue recuperar sua energia e você acaba morrendo no canavial. Já tivemos esses casos. E quanto às ’condições degradantes’: “Já tivemos empregadores se queixando publicamente de que ’os fiscais descobriram uma cama que não tinha a altura suficiente em relação ao chão e, por isso, chamaram meu trabalhador de escravo’. Mas isso não é verdade. Nós usamos combinações de indicadores específicos. Por exemplo: nossa lei estabelece algumas normas para alojamento. Uma coisa é você ter um banheiro muito sujo, outra é não ter nenhum banheiro. A ausência de banheiro é um forte indicador de degradância, mas não é suficiente. Então, você não tem banheiro; você não tem alojamento adequado; talvez você não tem alojamento algum; você não tem água potável; você não tem equipamento de segurança; você não tem abrigo para os trabalhadores no meio do campo. Eles não podem fugir do sol ou da chuva. Você não tem kit de primeiros socorros. Você não tem como levar para a cidade um trabalhador machucado. Você não tem nada! Isso é ’condições degradantes’”. Ele me disse que em 2013 uma comissão do Congresso que representa os interesses dos empregadores ordenou ao Grupo Móvel de entregar todos os relatórios de fiscalização de trabalho escravo existentes de modo a poder examina-los em detalhes. Por tão adverso que fosse o comitê, foi incapaz de encontrar um único caso de julgamento temerário.

Os ataques políticos continuam, no entanto, e parece provável que no Brasil a definição do trabalho escravo será rebaixada. Um jornalista de São Paulo, que segue de perto esta questão, disse: “É mais do que provável. É certo. A única questão é quando – este ano ou no próximo?” Perguntei a Roston qual efeito isso faria para o seu trabalho. Ele disse: “Nós manteremos nosso programa, mas ele terá muito menos peso do que agora”. Em outras palavras, a questão vai ser redefinida. Se reinstaurada, a Lista Suja irá encolher. E o Brasil irá sofrer um retrocesso.

É possível que isso não aconteça. A consciência da população sobre o trabalho escravo não irá desaparecer tão cedo. Comércio internacional, bancos e importantes corporações que aderiram ao Pacto Nacional podem exigir uma Lista Suja que continue a ter credibilidade. Xavier entende que a situação é muito séria. Falei com ele sobre a possibilidade de que muito do seu trabalho no Brasil possa ser desfeito. Se isso acontecer, eu disse, a sua estratégia pode ainda perdurar como um legado que afetará a vida de milhões de pessoas ao redor do mundo. Ele respondeu que “legado” não interessa a ele. O que importa é a ação direta no momento atual. Ele disse que nunca vai voltar para a França: seria melhor os seus adversários terem consciência disso. Aconteça o que acontecer, Xavier não se deixará dissuadir. Eu me lembro como, certa vez, no seu carro em alta velocidade, Xavier cortou no meio de um pasto, procurando o mínimo rastro de uma trilha naquele capim alto. Eu perguntei: “Isto é caminho ou é estrada?” Ele disse: “É estrada, claro!” E riu. Ele olhou para mim e disse: “É uma questão de fé”.


Tradução: Xavier Plassat [2].

Texto original (inglês): Vanity Fair, 31 dezembro 2015. http://www.vanityfair.com/news/2015/11/modern-day-slave-trade.

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[1Texto original (inglês): Vanity Fair (31 dezembro 2015).

[2Me seja permitido esse pequeno comentário: o texto de William L. é um retrato legal e bem incisivo, especialmente quanto à defesa da nossa luta contra o trabalho escravo e ao rico conceito que embasa a sua definição e potencializou seu combate, mas, por outro lado carrega louros exagerados nos ombros de uma só pessoa – eu – quando, evidentemente, o trabalho foi de muitas e muitos, anos a fio, bem antes de eu começar a entender de trabalho escravo... Não esqueçamos deles todos e delas todas. E prossigamos na trincheira que eles e elas nos abriram.

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