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BRASIL - Igrejas e questões político-agrárias no Maranhão

Victor Asselin

segunda-feira 10 de agosto de 2009, por Dial

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Permitam-me, ao fazer memória da história eclesial dos anos 60-90, dedicar estas palavras aos trabalhadores e trabalhadoras da área rural deste Estado e da periferia da cidade de São Luis e torná-las celebração, pois sua coragem e sua luta só podem ser expressados em sentimento de indignação diante de tamanha corrupção e de agradecimento pelo dom da vida de muitas vítimas.

Foi-me proposto o tema “As Igrejas cristãs e as questões político-agrárias no Maranhão”. Ser-me-á difícil tratar do assunto de maneira exaustiva, pois esta conversa não é o fruto de uma longa pesquisa. Bem ao contrário, é fruto de ume experiência de vida. Consultei algumas notas que ainda me restam e as juntei às lembranças que a memória conservou. Tratarei quase exclusivamente das comunidades de base, como se chamavam na época, nas áreas rurais, incluindo a da Ilha de São Luis, como um JEITO NOVO DE SER IGREJA ou como caracterizava Dom Pedro Casaldáliga “o jeito que os pobres descobriram de ser Igreja”.

Portanto, não tratarei da ação tradicional da Igreja na área rural, não abordarei a ação da Igreja na cidade de São Luis e, embora tenha muita afinidade com a opção das comunidades de base do interior, não falarei da ação da Igreja em São Luis no momento em que foi desencadeado o processo de ocupação do terreno urbano.

 Num primeiro momento, caracterizarei a ação das comunidades de base no Maranhão em quatro períodos:

  • antes de 1968: tempo de gestação das comunidades de base;
  • 1968-1975: tempo de descoberta de sua identidade;
  • 1976-1989: tempo de aprofundamento fé e vida, religião e política.
  • Após 1989: tempo de hesitação

 Numa segunda parte, aprofundarei a questão rural da época e a violência exercida sobre os trabalhadores e trabalhadoras rurais.

 Numa terceira parte, destacarei alguns pontos que me parecem importantes como resultados do processo das comunidades e concluirei formulando alguns desafios para a Igreja do Maranhão.

Primeira parte - A igreja católica

1. Antes de 1968 – Tempo de gestação das Comunidades de base

No Maranhão, fim dos anos 60, existiam a Arquidiocese de São Luis, tres dioceses e cinco prelazias: Caxias, Grajaú, Carolina, Pinheiro, Viana, Balsas, Bacabal e Cândido Mendes (hoje Zedoca). Dom Mota sucedeu a Dom Delgado em 1964 como Arcebispo, Dom Fragoso, auxiliar de Dom Delgado, foi nomeado para Crateús e chegou em 1966 Dom Edmilson como auxiliar de Dom Mota. Todos os bispos das dioceses e prelazias, exceto Cândido Mendes, eram religiosos e, exceto Caxias e Bacabal, italianos. Posteriormente foram criadas as dioceses de Coroatá, Brejo e Imperatriz.

Dom Delgado e seu auxiliar tinham grande interesse nas questões sociais e deram apoio significativo ao trabalho de educação de base. O laicato militante da Ação católica se fazia presente na sociedade e solidário das “Reformas de base” propostas pelas autoridades governamentais no começo dos anos 60, como o estava também a direção da Conferência dos bispos. Paulo Freire tinha iniciado, com a “pedagogia do oprimido”, o “Movimento de Educação de base” (MEB). Destacava-se a ACO (Ação católica Operária) na cidade de São Luis e a ACR (Ação católica rural) no meio rural. Porém o golpe de Estado de 31 de março de 1964, imposto pela força militar fez abortar o projeto.

O anúncio de um Concílio Ecumênico, feito pelo papa eleito em 58, João XXIII, criou novas expectativas. Havia questionamentos a respeito da DESOBRIGA, modalidade de assistência religiosa da Igreja Católica ao povo da área rural no Maranhão. Algumas inquietações se expressavam na então Prelazia de Pinheiro, fim dos anos 50, após a chegada dos missionários canadenses. Mons Gerard Cambron foi a figura que iniciou o diálogo.

Os anos da realização do Concílio Vaticano II ajudaram padres a amadurecer a necessidade de transformar o jeito de ser Igreja. Mantinha-se um contato permanente com as discussões no Concílio e se iniciou um processo de criação de pequenas comunidades, em particular nas áreas rurais, sob a liderança de catequistas devidamente formados a este fim. Era uma tentativa de descentralização do poder do pároco. Cabia-lhes conduzir as atividades religiosas e organizar as visitas do pároco preparando os pais para o batismo de seus filhos e para o casamento dos adultos. Essa nova prática surgiu em algumas paróquias da Prelazia de Pinheiro e de Balsas e, posteriormente, em paróquias da parte rural da então Arquidiocese de São Luis, hoje prioritariamente territórios das dioceses de Brejo e de Coroatá.

Havia algumas comunidades vivas no interior do município de Rosário e de Itapecuru. Quero prestar uma homenagem especial a esta região que sobreviveu naquele tempo, apesar da falta de acompanhamento. Eram comunidades com características próprias. Nesta região se destacavam lideranças como Calixto, Justo, Davi e outros que se juntaram depois.

O Concílio Vaticano II permitiu aos bispos de estabelecer relações entre eles. Sabemos que Dom Helder Câmara foi um eloqüente articulador dos bispos latino-americanos durante as suas estadias em Roma. Esse tempo levou os bispos a sentir a necessidade de uma pastoral mais organizada. Iniciou-se um processo de planejamento da Ação pastoral no Maranhão e algumas dioceses tomaram a iniciativa de realizar anualmente a Assembléia diocesana de pastoral, reunindo leigos, religiosos e padres. A pequena comunidade, chamada de base, já existente em certas áreas no molde já explicado acima, era considerada uma alternativa à desobriga, em outras palavras, uma alternativa à paróquia. Esta situação desencadeou uma tensão entre os promotores de ambas as partes, gerando até às vezes incompatibilidade de trabalho entre os líderes das comunidades de base e seus animadores e os párocos que mantinham firme a ação tradicional.

Foi um período em que se questionou muito a ação da Igreja. Tempo rico em buscas. Precisava superar a desobriga.

2. ANOS 68-75 – Tempo de descoberta de sua identidade

Em 1968, iniciou-se um novo período: as comunidades descobrem sua identidade. Em dezembro daquele ano, realizou-se em São Luis, Tirirical, o primeiro encontro das Comunidades de Base da Arquidiocese de São Luis. Participaram deste encontro, as lideranças da paróquia de Tirirical, na época área que se estendia do atual São Cristóvão até Itaqui-Bacanga e as comunidades que formam hoje os territórios das dioceses de Brejo e Coroatá. O encontro foi organizado pela coordenação pastoral da Arquidiocese tendo como coordenador o Pe Gerard Dupont e animado pelo padre Albani Linhares da diocese de Sobral, falecido o mês passado na cidade de Fortaleza. Iniciativa que se repetiu anualmente até o ano de 1973.

A década de 70 foi fértil em compromissos na vida da Igreja. Medellin estava aí e a “opção pelos pobres” vinha dar um rosto ao Concílio Vaticano II na América Latina. Existia o Instituto de Pastoral Latino-americano em Quito, Ecuador, que ministrava um curso de seis meses para habilitar os agentes da Igreja para uma ação na linha da libertação na América Latina. O padre Ernane Pinheiro de Recife tinha feito aquele curso e queria que a gente o fizesse. Dom Luis, bispo atual de Caxias também o fez.

Tínhamos que descobrir um novo caminho. Quem expressou bem o que a gente vivia é um lavrador do povoado Salgado de Itapipoca, Ceará.

“… com muita fé e boa vontade que eu tenho, não sei como irei ... “só prometo uma coisa, desta maneira de trabalhar eu não mais continuarei…o jeito dos trabalhos … dá muito mais chance aos exploradores explorarem com menos trabalho … continuar fazendo reuniões, visitas, só falando em amor, união, paz, fé etc.. e não falar do sofrimento do povo não dá mais … são os latifundiários que não tem amor e ficam tirando o couro dos pobres.

… até que abri os olhos …”

2.1 A articulação na Arquidiocese de São Luis

Estamos em 1973. Para realizar um trabalho de articulação do povo numa linha de compromisso com a realidade, tínhamos que pensar a nível mais amplo. Já existia no Maranhão uma articulação das Comunidades de base em algumas dioceses. Porém, o padre ainda era a mola do trabalho. “Onde não há padre, o pessoal torna bicho. É o padre que faz a animação no lugar”. Assim se expressava um leigo.

“As Comunidades cresceram, dizia o Arcebispo, e eu preciso de um coordenador a tempo integral para elas”. Nasceu a coordenação das comunidades do território da Arquidiocese de São Luis. Dois problemas emergiam: o individualismo dos agentes e o isolamento dos grupos comunitários e a fragilidade das Comunidades de base organizadas em torno do culto dominical e da catequese.

Após contatos com as diversas regiões, com a finalidade de tomar um rumo mais acertado, articulamos um grande encontro das Comunidades de base da Arquidiocese de São Luis, em dezembro de 1973. Neste encontro, queria se fazer uma avaliação mais aprofundada delas. O Pe Claúdio Perani do CEAS, Salvador, BA, assumia o papel da assessoria junto ao Pe Albani Linhares da diocese de Sobral, Ce, e do Pe Gérard Cambron. Pe Albani era muito conhecido no meio. Havia tempo que vinha acompanhando o trabalho das comunidades.

A presença do Pe Cláudio Perani foi muito importante. Passo a transcrever algumas de suas observações enviadas após o encontro. Iniciava seus comentários dizendo:

“O fato de poder reunir com tanta facilidade uma assembléia numerosa de camponeses revela a existência de um trabalho bem dinâmico no setor rural.

Fiquei impressionado ao ver o grau de responsabilidade do povo: ele sabe dizer a própria palavra, assume, organiza, questiona, tem responsabilidades … ”.

Em seguida fazia dois questionamentos :

 a. O problema da relação agentes-povo.

O primeiro questionamento se referia à relação entre agentes e o povo. Dizia ele:

“A necessidade de respeitar o povo e de favorecer sua responsabilidade, autonomia e participação não significa – evidentemente – uma omissão do agente.

Minha impressão é que exista uma certa omissão, em lugar de reconhecer a própria influência e questioná-la para ver como melhor utilizá-la em favor do povo.

Em primeiro lugar, mesmo quando a gente se afasta de uma intervenção direta, não deixa de influir em várias outras maneiras…

Em segundo lugar, as afirmações do povo não podem ser consideradas, assim sem mais, como palavra do Espírito Santo, só pelo fato que vêm do povo. Ao contrário, quanto mais espontâneas, tanto mais fácil que sejam equívocas, condicionadas por toda uma ideologia de opressão que se torna presente em mil maneiras na vida do camponês. A funcão do agente não é simplesmente técnica, mas deve proporcionar a possibilidade de uma visão sempre mais crítica (que liberta).”

 b. A questão da ideologia do povo (e dos agentes)

O segundo questionamento levanta a ideologia do povo e dos agentes.

“O plenário manifestou o prevalecer de uma visão individualista e voluntarista. Individualista: grande parte da atenção foi concentrada sobre a responsabilidade do “padre” e do “dirigente”. Voluntarista: muitas soluções iam na linha da fé, paciência, coragem, etc.

“Não havia uma análise mais estrutural que relacionasse entre si os vários problemas, compreendendo mais profundamente as causas escondidas. Daí o fato de apresentar soluções típo: formar a família, educar as pessoas, etc., numa visão bastante estática.

“Nessa mesma linha, a falta de uma visão mais “conflitiva”do evangelho.”

Após este encontro, duas necessidades saltavam aos olhos: a necessidade da articulação dos agentes e das bases e a importância da análise mais profunda da realidade.

O encontro de dezembro de 1973 não ficou sem resposta. Logo após o encontro, Albani, Carolina e eu nos reunimos, sob a sigla VAC (Victor – Carolina – Albani), com a finalidade de nos interrogarmos sobre a modalidade de desencadear um processo de articulação dos agentes e sobre a modalidade de colaborar para que as bases desencadeassem seu próprio processo. Fizemos uma segunda reunião em janeiro de 1974. A partir daí, articulação e capacitação andaram juntas, aberto em âmbito estadual, regional e nacional.

É de suma importância atentar ao fato de que uma das forças das comunidades de base do Maranhão foi o fenômeno de sua articulação nos diversos níveis, estadual, regional, nacional. Vejamos.

2.2 Articulação no âmbito estadual

Em janeiro de 1974, iniciava-se um processo de articulação a nível estadual, capacitando as lideranças nos seus respectivos municípios de acordo com suas necessidades. O encontro anual da Arquidiocese de São Luis, iniciado em 1968, passou a ser semestral (julho e dezembro) e eram convidadas lideranças de todas as dioceses do Estado. Reuniam-se de 100 a 120 pessoas. A coordenação do encontro, incluindo as tarefas de conteúdo, manutenção e cozinha, era assumida por região escolhida no fim de cada encontro. Os temas até então da vida interna da Igreja passaram a ser os da vida do povo: direitos humanos, direitos do lavrador, lei da renda, direitos e deveres do lavrador, etc.

Os camponêses começaram a abrir os olhos. Na avaliação do encontro de dezembro de 1974, pudemos escutar comentários como estes:

“Isso deu para mostrar que a gente deve ajudar não só na parte espiritual, mas também material.”

“Descobri que temos direitos. Vai ser uma base que vai me afirmar.”

“Se alguém disser “faça isso”, vou dizer “diga de novo”, “espera aí.”

“Estou satisfeito em saber que o homem do campo pode reclamar.”

“Sinto-me com grande responsabilidade.

2.3 Articulação no âmbito regional

Nesse mesmo período, a articulação estadual se estendeu ao regional do Maranhão-Piaui-Ceará, divisão eclesiástica da CNBB na época, NE I. Viveu-se um tempo rico em solidariedade. São os encontros realizados na Meruoca, Ce, em 20 a 25 de fevereiro e em 21 a 30 de agosto de 1974 e outros em Teresina, Pi. Apareceram conflitos em terras da Igreja. A gente se perguntava: como vamos nos comportar em luta contra a Igreja que é também nossa ? Esta situação nos levou a buscar, a nível mais amplo, um trabalho de libertação. A pedagogia libertadora era nossa principal preocupação.

Do encontro de agosto de 1974, na Meruoca, nasceu uma equipe regional de articulação que se deu como tarefa o acompanhamento e a animação dos participantes das regiões MAPICE. Era importante estender nossa articulação com os outros grupos existentes. Os membros da equipe continuavam a se interrogar sobre a viabilidade de tomar a iniciativa da articulação regional das bases. Que tipo de interferência podemos ter neste processo ? Como fugir do perigo de elitização ? Os agentes se organizaram em pequenos grupos de acordo com seu interesse de estudos e aprofundamentos: história – religiosidade popular – sindicato – lutas populares – leis da terra – luta de classe e projeto babaçu.

O pessoal do Ceas, em particular Claúdio e Andrés, facilitaram muito a caminhada da articulação regional com visitas às regiões e com cursos de capacitação.

2.4 Articulação no âmbito nacional

E mais, na mesma época, havia interesse em desencadear um processo de articulação nacional. Estávamos em anos difíceis da ditadura. Alguns bispos tinham iniciado um processo de articulação no âmbito da CNBB e desejavam ampliá-la para chegar até o povo. Imaginaram convidar algumas lideranças das diversas regiões do país. O nosso regional, bastante articulado, recebeu o convite. A primeira reunião se realizou nos dias 8 a 10 de fevereiro de 1974 em Salvador, BA. Procurava-se pistas para a articulação a nível nacional. As preocupações e as perguntas dos participantes eram as mesmas que a gente se fazia no Maranhão. O que significa a “opção pelos pobres”? “Tem-se a consciência de dominado”?

Pelo fato da conjuntura nacional, os participantes não queriam e não podiam ser considerados como grupo. Era preciso porém não ser um grupo nem “clandestino” e nem “público”. Criar comunhão entre pessoas-chaves das diversas regiões do país em vista de uma ação libertadora era o objetivo de todos. Por isso a gente delineou alguns critérios para uma ação libertadora. Uma ação é libertadora, dizia-se, quando ela:

 atinge a raiz e não só os efeitos;
 leva a uma mudança;
 desperta a consciência crítica;
 leva o povo a se auto-determinar;
 incentiva a participação desde a base.
 Duas vezes por ano, essas pessoas se encontravam em âmbito nacional.

2.5 Encontro de Vitória, E.S.

Em Vitória do ES, vivia Dom Luis Fernandes. Era bispo auxiliar da Arquidiocese, muito interesssado pelas Comunidades de base. Queria fazer uma avaliação mais aprofundada do trabalho dele. A este fim, no segundo semestre de 1974, resolveu convidar algumas pessoas de diversas regiões do país trabalhando com elas. O encontro era marcado para os dias 6 a 8 de janeiro de 1975. Pedia enviar com antecedência o relato de uma experiência de uma comunidade eclesial de base. Neste momento começou a aparecer a denominação eclesial. Contava ele que a idéia deste encontro tinha nascido numa conversa com Eduardo Hoornaert quando se interrogava sobre o futuro das CEB’S. E Eduardo de dizer : “Porque não reunir esses grupos do Brasil dentro dos objetivos da diocese de Vitória para estudos ?”

O objetivo de Dom Luis era, ajudado pela colaboração dos participantes das diversas regiões do país, descobrir pistas concretas para o trabalho futuro da Igreja de Vitória. No fim daquele encontro foram apresentadas diversas opções que serviram de subsídios para a elaboração das conclusões do encontro. No meu caderno de anotações leio:

“Nas diversas opções apresentadas, optou-se, em primeiro lugar, o assumir concreto do significado de “libertação”: problema político, cultural e ministerial. Quanto ao problema político, destacou-se um ponto fundamental: TERRA. Isso significa que se deve tomar uma posição a respeito da propriedade. Quanto ao problema ministerial, criar uma assessoria para refletir sobre a passagem entre o sistema clerical e aquele novo que vai brotar. É necessário garantir a autonomia da base.”

Essas opções discutidas em plenário foram formuladas nas conclusões finais de maneira seguinte :

“Em obediência ao Evangelho e aos apelos que vem da realidade vivida pelo povo, optamos por uma evangelização libertadora através do trabalho nas CEB’S. Isso implica numa clara opção nossa pelos oprimidos.

Na linha da ação política, que a Igreja participe da luta de libertação do povo, denunciando toda forma de injustiça e suas causas, propondo uma sociedade sem barreiras que impedem a fraternidade e a comunhão entre os homens.”

Dom Luis não pretendia desencadear um processo de articulação nacional das CEB’S. Mas assim foi, pois o ano seguinte, em 1976, houve um segundo encontro em Vitória com uma participação mais ampla de agentes trabalhando nas CEBS e em 1977 foi o encontro de João Pessoa, encontro que teve todas as características da articulação nacional das lideranças compromissadas com a causa do povo. E assim seguiram os encontros nacionais.

2.6 Encontro no âmbito da Amazônia Legal

Concomitante ao encontro das CEB’s em Vitória, ES, Pe Virgílio Uchoa, assessor da linha dos ministérios da CNBB, começou a articular um encontro de representantes trabalhando no território da Amazônia Legal para estudar a questão TERRA.

No dia 19 de junho de 1975 estávamos reunidos, agentes das regiões e membros das comissões nacional e regionais de Justiça e Paz, em Goiânia. Trabalhamos até o dia 22. Num primeiro momento assistimos a palestras de representantes do INCRA e da Contag. Em seguida tentamos uma análise crítica da problemática terra na Amazônia Legal. Destacou-se a importância do instrumento jurídico, da falta da posse legal e da conscientização e do comportamento da Igreja. Fez-se uma crítica ao modelo brasileiro. O dia seguinte falou o Superintendente da SUDECO, representando o Governo na circunstância.

Prosseguindo, fez-se uma pergunta: “Dentro do que estamos fazendo, qual o objetivo, a visão, os impasses e as contradições da ação da Igreja?” Os debates foram animados e preocupantes. O que fazer para que este encontro produza seu fruto ?

Lembro daquela noite, onde, num quarto de dormir, estavam presentes Andrés, Claúdio, Ivo, D. Pedro e eu alimentanto informalmente a conversa. Estávamos procurando jeito de liderar as conclusões do encontro. Surgiu, não sei como, a idéia de sugerir a Dom Moacyr Grechi, responsável pela linha missionária da pastoral da CNBB, a criação de uma Comissão de assessoria a ele para o assunto terra. Idéia genial. No momento da caminhada final do encontro, a proposta foi apresentada, votada e aprovada. Acabava de nascer a Comissão Pastoral da Terra como órgão de assessoria ao bispo responsável pela linha missionária da CNBB.

3. Anos 1976-1989: Tempo de aprofundamento

O Maranhão estava em plena crise. Desde o “Maranhão Novo” do então ex-governador José Sarney, o Estado vivia fortes tensões, violências e mortes. A grilagem pipocava em todos os cantos, em particular na área do Pindaré, diocese de Viana. O novo bispo nomeado, presente ao encontro da Amazônia Legal, vinha para “botar órdem” e acabar com a memória de Dom Hélio Campos.

A notícia da criação da CPT foi uma feliz notícia para o Maranhão. Chegava como uma recompensa a tantos esforços de tantos agentes da Igreja comprometidos com o povo.

Ivo Poletto assumiu a tarefa do secretário-executivo em Goiânia. Neste intervalo do segundo semestre de 1975, ele visitou as diversas regiões, inclusive o Maranhão. Precisava informar. Dom Mota, arcebispo de São Luis, em cuja arquidiocese assumia eu a coordenação das CEB’S, ainda não tinha dado seu acordo. Manifestou sua adesão em 5 de março 1976, após a criação oficial da CPT no Maranhão, decisão tomada pelos agentes já engajados nas CEBS e movimentos populares diversos.

A CPT desencadeou o processo de articulação pelas bases e deu uma vitalidade às comunidades eclesiais de base, sonho que a equipe de articulação sonhava há alguns anos.

Continuavam os encontros a nível nacional. Porém, em maio de 1976, tomou-se conhecimento de que o meio rural se apresentava mais organizado e articulado através da CPT, que os índios já tinham sua organização através do CIMI e que estava também articulado o meio operário, em particular nas regiões de São Paulo, dando nascimento à CPO. Resolveu-se então encerrar esta modalidade de encontro por ter conseguido rapidamente seu objetivo, isto é articular os rostos diferentes do povo de Deus em ação. No mesmo ano, em agosto, a equipe de articulação do MAPICE também questionou a necessidade de continuar os encontros a nível regional. Após uma avaliação dos últimos acontecimentos, chegamos à conclusão de que também os encontros regionais tinham cumprido sua missão. A raiz da articulação das CEBS estava plantada e cabia aos jardineiros a tarefa de continuar a cultivá-la.

Diante dos fatos e do crescimento da consciência dos homens e das mulheres no campo, hoje, ninguém duvida. A Criação da Comissão Pastoral da Terra em junho de 1975 foi um gesto profético para alguns e uma loucura para outros. Ela não nasceu nem por acaso e nem por geração espontânea. Chegou como um ponto de encontro de diversos caminhos que vinham se construindo. E chegou como resposta à busca das CEBS: unir Fé e vida numa prática política e ecumênica. Apareceu o rosto camponês da Igreja. Foram anos de amadurecimento das CEBS e da ação da Igreja.

4. Após 89: Período de hesitação

O movimento das “Diretas já” e da Constituinte marcaram a participação popular, selando sua luta numa Constituição chamada “Constituição cidadã”, pois, apesar de suas ambigüidades, conseguiu firmar importantes conquistas. As CEBS no Maranhão, a exemplo das outras regiões do país, deram suas contribuições nesta conquista.

Seguiu-se um período de hesitação: assistimos à desarticulação dos movimentos, à dispersão das forças, ao fechamento dos espaços conquistados em âmbito eclesial, ao abandono, à fuga e à perda parcial da liderança, à perda de visão de conjunto e de motivação, a um vazio de informações, etc. Enfim é como se, com a volta ao governo civil, todos os problemas tivessem sido resolvidos.

Este período de indeterminação permitiu às elites de continuar a manter os pobres na ilusão. O episcopado não tinha mais o vigor e o dinamismo dos anos 70-80. A partir de 1990, apareceram as novas tendências na Igreja. Priorizava-se o “espiritual”. Sentia-se a influência dos movimentos religiosos internacionais. A hierarquia da Igreja pouco a pouco esqueceu seu compromisso com as « angústias e tristezas do povo” e voltou à sua vida interna, provocando assim uma mudança radical na formação dos seus agentes de pastoral. As CEB’S e os movimentos sociais mais significativos não encontraram nesta reviravolta o ambiente de avaliação, de reflexão e de crescimento desejado e tomaram certa distância.

Não tendo acompanhado de perto e de dentro as CEBS após 1990, deixo de fazer sua análise e, com muita segurança e brilho, João Maria poderá fazê-la.

Segunda parte - A luta contra a grilagem
Terra, campo de ação das CEBS

A terra, a luta pela terra ou mais exatamente a luta contra a grilagem marcou a vida das CEBS. Com a CPT os cristãos e cristãs lavradores acabavam de encontrar o caminho para definir a sua identidade, rosto camponês da Igreja no Maranhão, como já falamos. Na cidade houve uma luta semelhante com a ocupação do terreno urbano. São Luis é uma ilha. Numa ilha, não se invade, se ocupa o terreno.

1. Uma memória

“No dia 21 de Abril de 1500, quando aqui chegaram os portugueses, o país que viria a ser chamado Brasil perdeu a autonomia sobre seu território e iniciou-se o processo de grilagem.

“… a Lei de terras instituiu, (Lei 601 de 1850) no Brasil, o cativeiro da terra – aqui, as terras não eram e não são livres, mas cativas” escrevia José de Souza Martins. E continua: “Quando , a 31 de março de 1964, mudaram os donos do poder, consagrou-se uma nova etapa de grilagem do território.” [1]

A grilagem de terra no Maranhão deve ser compreendida no contexto de que grilagem é problema estrutural e por isso, é planejada e estimulada.

2. Alguns aspectos históricos

Até a década de 30 se esboçava um plano de integração do norte de Goiás, hoje Tocantins, a partir de Anápolis. Nos anos 40, o projeto da Colônia Agrícola Nacional de Goiás em Ceres aberto pelo INIC (Instituto nacional de Imigração e colonização) depois SUPRA – INDA- IBRA e INCRA – foi um ponto de atuação dos grileiros no médio norte de Goiás, no sul do Pará e na região tocantina, Carolina, Estreito e Imperatriz. Nos anos 50 foi a construção da nova capital Brasília e da estrada Belém-Brasília.

O que era Imperatriz, no começo do século XX ? Fundada em 1852, foi elevada à categoria de cidade em 1924. Em 1950 contava 1.152 habitantes e, em 1960, 4.137 habitantes. E o que era Santa Luzia do Tide (Clotilde) na mesma época ? Existiam povoações bem antigas beirando o rio Zutiuá mas Santa Luzia foi criado em 1951 por três lavradores vindo de Pirapemas. Tornou-se município em 1959.

3. As grandes mudanças e a grilagem

Estava se preparando uma MUDANÇA RADICAL em toda esta região. As terras do Maranhão eram devolutas (cativas como dizia José Martins) e passaram a ser cobiçadas pelos interesses de São Paulo, Triângulo Mineiro e Goiás. Multiplicaram-se as fraudes. Uma vez planejado e criado o problema social, precisava usar de criatividade para justificar e legalizar a apropriação dessas terras. Sucederam-se leis e organismos de acordo com as necessidades do momento. Foram anos de extrema violência. Vamos relembrar alguns momentos desta história, pois nos ajudará a compreender a situação do povo maranhense e o compromisso assumido pelas comunidades eclesiais de base naqueles anos. Dividirei esses momentos em três etapas:

Primeira etapa da grilagem no Maranhão: 1956-64
Segunda etapa da grilagem no Maranhão: 65-68
Terceira etapa da grilagem no Maranhão: 69-80

 Primeira etapa da grilagem no Maranhão: 1956-64

Em 1956 determina-se a construção da nova capital e da estrada Belém Brasília; em 1958 já existiam alguns grilos Gurupi,, Torre Segunda, Campo Alegre e Frades na parte oeste do Estado e ao longo da Belém-Brasília vieram lavradores mineiros, baianos e capixabas, típo classe média rural. Estes empregavam mão de obra e ocupavam 200, 300, 500 hectares. Os empreiteiros da estrada ocupavam também trechos de terra para fins especulativos.

O clima de Imperatriz era de muita violência. Era lugar de esconderijo na Beira do Tocantins, refúgio de foragidos, assassinos e pistoleiros. Pedro Ladeira era um. Dizia-se: « Quem matava cinco, deixava seis amarrados pra morrer no outro dia ».

No começo dos anos 60, a fraude se instalou. Criaram pessoas fictícias, emitiram escrituras particulares baseadas em inventário que nunca existiu. Foi a primeira etapa da grilagem em que se manifestaram os interesses paulistas, encabeçados pelo senador Orlando Zancaner de São Paulo. Nessa mesma época, ao longo do trecho da estrada em construção, vindo de Belém em direção a Brasília, apareceu a “indústria de usucapião”, desencadeada no município de Turiaçu em 1963 através do juiz de direito José Ribamar Fiquene e dos falsos registros do cartório de Carutapera, O Juiz Fiquene foi posteriormente juiz de Imperatriz.

- Segunda etapa da grilagem no Maranhão: 1965- 68

Em 1965 começa o asfaltamento da estrada Belém-Brasília e em 1966, o governo brasileiro deu permissão à Força aérea dos USA de mapear aerofotogramétricamente o país. O grileiro João Inácio promovia venda de terras para os norte-americanos.

Nesta segunda etapa, houve um impulso da grilagem em direção Marabá e em direção Açailândia. Houve grande migração, minoria baianos, mineiros, capixabas e maioria piauienses e cearenses. Eram em geral, pobres. Dizia-se: “atrás da pobreza, vem os grileiros”.

Em 27.10.66, por lei federal, incorpora-se os 100 km de cada lado das rodovias federais construídas, em construção ou planejadas ao patrimônio da União e o Governo José Sarney a partir de janeiro 67, toma diversas medidas.

Três medidas tomadas pelo governador Sarney são de suma importância para entender o destino do Estado do Maranhão. Em outubro de 1968, ele cria a Delegacia de Terras em Imperatriz, nomeando Pedro Nunes de Oliveira, delegado do órgão, e Agostinho Noleto, procurador. O objetivo da delegacia: disciplinar a ocupação e titular as áreas, transferindo o domínio público para o domínio privado. Estourou mesmo a grilagem. Em 6.12.68, ele cria a Sagrima (Secretaria de Agricultura do Maranhão e nomeia Lourenço Vieira da Silva, secretário. Enfim, em 28.11.69, cria a Lei de terra, 2.979, que facultava a venda de terras sem licitação a grupos organizados em sociedades anônimas, sem número limitado de sócios, podendo requerer cada um até 3.000 ha.

Para complementar o quadro, em 9.7.70, foi criado por Lei federal 1.110, o INCRA, órgão máximo para administrar as terras ao longo das rodovias federais. Em Imperatriz foi o começo da proteção dos requerimentos das grandes propriedades.

A segunda etapa da grilagem se formalizou em 1968 pela fraude do inventário no cartório do 2º Ofício de Imperatriz em torno da figura fictícia de Faustino Pereira de Carvalho. É GRILO PINDARÉ, chamado grilo da Fazenda Pindaré. Grilo Pindaré é um grilo privilegiado. Grilo de dimensão muito elástica. Nunca foi fazenda. Foi grilo que consistiu em se apossar de todas as terras livres do Estado do Maranhão. Em 1975, o juiz Federal Carlos Madeira ao julgar um processo aberto pelo Incra e pelo Estado, dizia: “que desvalidos são esses que tinham uma posse digna dos maiores representantes de Portugal ?”

- Terceira etapa da grilagem no Maranhão: 1969-80

Fim do ano 60 e começo do ano 70, abre-se a primeira picada da estrada Açailândia-Santa Luzia. O grilo Pindaré toma proporções enormes. Instam-se grandes projetos agropecuários. A delegacia de Terras era bem pequena para os grandes apetites. Sarney, já senador, apresenta a candidatura de José Leite, pernambucano, à prefeitura de Santa Luzia, o que abriu as portas para os empresários pernambucanos na região. O governo militar, em 1.4.71, por decreto-lei 1.164, declara a faixa dos 100 km. de cada lado das estradas federais, “área de segurança nacional”.

Pedro Neiva de Santana tinha sucedido a Sarney como governador do Maranhão. Houve uma verdadeira corrida para as terras do Pindaré. As transmissões eram feitas com extrema rapidez. Pedro Neiva consagrou a grilagem. Não acreditava na documentação apresentada, mas estava diante do grupo poderoso dos senadores Orlando Zancaner de São Paulo e Osiris Teixeira de Goiás, apoiados pelo então senador Sarney. Querendo atrair investimentos para o Estado, acolheu o grupo de Ituiutaba (MG), recomendado pelo governador de Minas, Rondon Pacheco. Isso deu sinal verde a Agostinho Noleto para realizar o que tinha projetado por volta de 68-69 e o juiz Delfino Sipaúba de Imperatriz dizia : “Porque não podemos autorizar o registro do grilo quando o próprio Estado autoriza ?

Em 6.12.71, a Lei estadual 3.230 cria a Comarco, incorporando ao seu patrimônio uma área de terras localizada nos municípios de Grajaú, Lago da Pedra, Vitorino Freire, Pindaré-Mirim, Santa Luzia e Amarante, avaliada em 1.700.000 hectares e uma outra área de 400.000 hectares. Na região do Maracaçumé (Turiaçu), além dos 46 requerimentos já existentes na área, reservou-se 300 hectares para assentar 10 mil famílias e o restante era para os grandes projetos.

Chegou o governo Nunes Freire que não queria entregar terras a latifundiários outros que maranhenses. Ameaçado de perder o cargo, foi obrigado a assinar escrituras de grilagem.

Delegacias de Terras, Sagrima, Incra e Comarco criaram o conflito social. As forças se enfrentavam. No governo de Castelo entra em cena a Coterma (abril 79) a nível estadual e o Getat (fev. 80) a nível federal. O Incra tinha autorizado a ocupação para mais de um requerente em cima das mesmas terras. Agora o Getat tinha que resolver. No Maranhão, a Coterma quis resolver o conflito social fazendo acordos em terras do Estado. Para acelerar o processo criou-se a Ceter (80), nomeando o Pe Hélio Maranhão, ligado diretamente ao governador para fazer mediação entre lavradores e Estado.

Na terceira etapa da grilagem, em 1972, se reincentivou a fraude cartorial do tempo do governador de Pedro Neiva de Santana e Lourenço Vieira da Silva, secretário de agricultura, foi autorizado a fazer o devido registro.

O que ficou claro nesta etapa é que o grilo teve um ponto de partida e se estendeu até conseguir a realização do propósito inicial, isto é apropriar-se de todas as terras devolutas do Estado identificadas como necessárias para o desenvolvimento e a segurança.

Com este superficial panorama, podemos verificar o percurso da grilagem no interior do Maranhão. De Imperatriz, a grilagem segue o rumo para Grajaú-Barra do Corda passando por Porto Franco e pela antiga estrada Imperatriz-João Lisboa; abre-se novas fronteiras para o Oeste com a estrada Imperatriz-Coquelândia, passando por Cidelândia, Trecho Seco em direção a São Pedro da Água Branca; abre-se novas fronteiras para o Leste, Br-222, Açailândia-Santa Luzia, entrando nos municípios de Pindaré, Monção, Santa Inês, Bom Jardim e Viana e novas fronteiras ao longo da estrada Belém-Brasília, penetrando na Serra do Tiracambu, sul de Carutapera. Abílio, personagem importante na fraude de documentos, dizia: “grilo que eu faço, galinha não come e nem voa. Nó que eu dou, ninguém desata”

4. Operação limpeza da área – Violência

Toda a área grilada era habitada por lavradores. Era campo de atuação das comunidades eclesiais de base. Precisava limpar a área. A operação limpeza da área é uma história sangrenta e indigna de toda pessoa que tem um mínimo de dignidade. Pedro Ladeira, homicida fugido da Justiça de Minas foi uma peça chave junto aos órgãos de terras, da justiça e da polícia de Imperatriz para o verdadeiro massacre que se operou na área do Pindaré.

4.1 A caça aos posseiros

Caçar os posseiros para afastá-los da área era o objetivo. Diversos métodos eram utilizados como atirar semente de capim por avião ou helicóptero sobre a plantação de arroz dos lavradores. Também a polícia apreendia as espingardas, armas de caça, ou qualquer utensílios necessários à lavoura como facão, faca, foice. Tudo isso muitas vezes era acompanhado de ameaças de morte: “tenho uma sepultura para você e outra para sua família” ou “já dei uns tiros no irmão do Dr. Jurandir… com vocês não vale a pena se sujar. Basta vender uma vaca e com o dinheiro pagar um pistoleiro”.

Quando os grileiros e seus empregados encontravam resistência, passavam a invadir, destruir e queimar as roças com apoio da polícia. Prendiam e levavam os posseiros para a cadeia em Imperatriz. Visitavam as casas à noite, vasculhavam e cercavam a casa, apresentando-se às vezes como policiais federais.

O sargento Furrupa fez muita desgraça na área. Matou, humilhou gente sofrendo, deixou mulher perdida pelas matas e queimou casas na região de Buriticupu. A polícia militar de Imperatriz recebia de Pedro Ladeira uma “mesada” de 20 mil mensais. Conseguiram aliciar alguns posseiros para torná-los corretor de terras ou para ser pistoleiros, Os Bonfim (Resende) são exemplos. Contratava-se também pistoleiros de fora do Estado. Era uma verdadeira organização do crime.

Não se pode avaliar o número de mortos no Pindaré. Os moradores falam de um número incalculável. Quincas Bonfim mandou matar 7 num só dia. Tirou as orelhas das vítimas e saiu mostrando. Diz-se que Bonfim matou mais de 80; no meio da fazenda Cacique foram encontrados cadáveres no meio da mata; na fazenda dos irmãos Valle morreram mais de 100 peões e na fazenda vizinha de Olynto Garcia havia um cemitério.

Uma autoridade de Imperatriz me dizia que na cidade deviam se registrar tres mortos por noite e que a própria polícia fazia parte das quadrilhas. Acrescentou um morador: “ninguém tinha coragem de sair de noite antes da energia chegar. Aparecia tantos mortos pelas ruas, sem o “couro” do rosto para não ser reconhecido…”

Em caso de grande resistência, era a chacina, pois inventava-se uma acusação de subversão e se matava a liderança. O fato é que, apesar de terem do seu lado toda a força política, econômica, judiciária e militar, os grileiros não conseguiam o afastamento de muitos posseiros. É assim que, na região de Buriticupu, teve-se então a idéia de inventar um movimento subversivo. Enquadrar os posseiros como terroristas seria o único meio de resolver o problema e afastá-los da área. Ladeira dizia : “poderemos matar sem que seja crime”. Os posseiros foram surpresos por rajadas de metralhadoras e tiros de fuzis. Intenso tiroteio. Alguns lavradores passaram dias nas matas. Todos os lavradores encontrados eram presos, espancados. A operação durou quase uma semana e lavradores foram acusados de subversão, preso, sem poder comunicar com quem quer que seja.

A morte do líder sindical João Palmeira é exemplo da violência praticada contra os lavradores. Um dia João Palmeira foi surpreendido com seus colegas na sua roça na hora do almoço por um bando de pistoleiros. Sem conversa, o tiroteio começou. Palmeira foi crivado de balas. Não tendo morrido logo, os jagunços o sangraram a faca. José Viana que quis ajudar morreu também. Após a chacina, o próprio Ladeira passou pela casa da esposa de João Palmeira “dando notícia para mandar buscar o corpo dos que estavam mortos nas matas.” A viúva foi falar com o Comandante do 50 Bis que lhe disse: « era para ter sido morto há muito tempo, por ter o costume de viver a tomar as terras dos outros”. Numa carta da viúva ao presidente Geisel dizia : “gostaria de esclarecer a V.Exa, que qualquer investigação ou sindicância que fosse determinada a ser feita pelas autoridades do Incra ou mesmo da Polícia Federal do Maranhão, serão todas em vão, porque elas nunca conseguem apurar a verdade… quero acreditar que seja do conhecimento de V. Exa que o Presidente do Incra Lourenço Tavares Vieira da Silva é bastante familiarizado dos grileiros que infestam esta região, notadamente os que estão vindo do Estado de MG”.

4.2 Contratação dos trabalhadores

Outro método usado para “limpar a área” como se dizia, foi a contratação de trabalhadores. Por exemplo, Pedão, delegado de polícia de Açailândia, contratava trabalhadores para a derrubada e, uma vez o terreno pronto, os matava. Um morador dizia : « lá era sumidoro de gente ». Numa fazenda, 30 trabalhadores tinham sido contratados. Fizeram o serviço até o fim, tirando como adiantamento apenas o necessário para as despesas. Fazendo as contas, Zé Cândido cercou os peões com sua turma e botou fogo. Morreram todos queimados na mata.

« O crime é algo milagroso. Não há culpados e ninguém fica sabendo. O assassino nunca aparece e quem sabe nunca diz. Quem morre é considerado o criminoso. Aqui tem que se passar por bobo ou por medroso. Ouvir as coisas e se esquecer, senão está morto. »

Terceira parte - Reflexões sobre o compromisso dos cristãos e cristãs das CEBS

As comunidades Eclesiais de Base são verdadeiras escolas de aprendizagem e a terra, o campo da prática de sua fé. Essa prática foi rica em descoberta. Apresentarei algumas conquistas que me parecem importantes.

1. Algumas conquistas

1.1 Religião e fé cristã são diferentes

Os participantes das CEBS descobriram que fé cristã tem uma identidade que a distingue da religião e que o Evangelho não é uma religião. A prática ensinou que a fé cristã não é só falar de um engajamento religioso, mas de uma opção de vida que segundo o Evangelho de Jesus, implica uma decisão que engloba tudo. A fé cristã é a adesão a um projeto que exige uma opção total e totalizante. E este projeto é o de Jesus. A fé não é um ato qualquer entre muitos outros nem uma opção ligada a um setor da vida. Ela quer ser une inspiração que orienta a visão, os critérios, as atitudes e a prática das pessoas, dos grupos ou de comunidades. Ter fé é entrar com Jesus na aventura do Reino, é construir o Reino com Ele, é fazer com Ele o caminho para que o Reino aconteça.

1.2 Religião e política andam juntas

Os cristãos e cristãs começaram a entender que a fé cristã além de estabelecer uma relação com o Pai de Jesus, estabelecem também uma relação com sua obra, a Criação. Descobriram que essa prática é o viés político da fé. Falar de política é falar da fé vivida no social, é falar do engajamento na sociedade civil, é falar da participação do povo na vida pública. Entendendo a fé desse jeito, não havia problema em dialogar com todos e todas, até com aqueles e aquelas que tem referências e valores diferentes da fé cristã. As CEBS começaram a viver a prática do ecumenismo.

1.3 Política, questão de vitalidade para as CEBS

Os participantes das CEBS chegaram a definir a política como uma questão de existência e de vitalidade para elas. Mais do que nunca, tornou-se um imperativo de priorizá-la e lhe dar lugar de destaque em virtude da necessidade de se fazer presente nas mais variadas situações revoltantes das maiorias “sem emprego”, “sem teto”, “sem terra”, e dos “sem” de todo típo. Política é uma exigência da fé cristã. É a prática amorosa do Samaritano.

1.4 Evangelho e Política tem o mesmo objetivo

A política é a SERVA da plena realização do ser humano e de todos os humanos, a SERVA DA FELICIDADE. Por isso tem que se preocupar, em primeiro lugar, com o povo que vive marginalizado, excluído da participação na sociedade. É também o objetivo do Evangelho expressado na opção pelos pobres. Esta compreensão passou a ser o objetivo de sua luta contra a grilagem e a favor da conquista da terra. E não havia melhor inspiração do que o Evangelho de Jesus Cristo para sustentar sua luta quotidiana, pois Ele mesmo tinha feito a opção pelos excluídos como pedagogia para buscar o Bem Comum. Evangelho e política se dão as mãos para estabelecer a justiça.

Neste contexto, os cristãos e cristãs amadureceram a sua fé cristã. Foi fruto de uma longa caminhada. Tomou raízes na ação católica da geração anterior e continuou com a inspiração do Concílio Vaticano II. As CEBS tomaram o risco de viver a Igreja de maneira diferente. Dom Pedro Casaldáliga dizia: é “o jeito que os pobres descobriram para ser Igreja”.

2. Dificuldades

A prática desta articulação fé-vida foi e ainda é semeada de muitas dificuldades, pois elas são como dois caminhos que correm em paralelo. Destacamos duas dificuldades que foram vividas pelas CEBS na prática política: a prevalência do projeto pessoal no exercício do mandato e o afastamento dos agentes da Igreja dos seus militantes.

2.1 Prevaleceu na política o projeto pessoal

A politização das CEBS levou diversos cristãos e cristãs a se engajar em partidos políticos e alguns, a assumir um mandato. Para estes, houve ambiguidade no jeito de exercê-lo. Não houve a devida mudança de mentalidade nos militantes de tal maneira que o exercício do poder continuava a se legitimar pela lógica do exercício tradicional da política e não pela perspectiva do serviço ao Bem Comum. Fez-se na prática o que se condenava na teoria. Dito de outra maneira: faltou coerência no exercício do poder. Prevaleceu para muitos o projeto pessoal. As motivações evangélicas que deveriam ter justificado o agir dos cristãos no exercício do mandato, se perdeu no caminho.

2.2 Os agentes da Igreja se afastam dos militantes políticos

O compromisso de cristãos e de cristãs das CEBS na militância política gerou uma resistência da parte dos responsáveis conservadores da Igreja. Exerceu-se pressão para que se afastassem do engajamento em partido político. Dizia-se: temos que separar a ação pastoral do engajamento político e as CEBS evoluíam em pensamento diferente. Silenciosamente, uns se afastaram por estratégia e outros foram cooptados pelo poder oficial. A voz da hierarquia enfraqueceu e as CEB’S perderam a visibilidade que lhes era garantida pelo prestígio da hierarquia da Igreja.

CONCLUINDO esta reflexão, podemos dizer que, apesar de certos fracassos registrados, a Igreja ganhou experiência. Num seminário de avaliação realizado em junho de 2002 na cidade de Balsas com a presença de cristãos e cristãs do Estado, dizia-se:

“Temos a certeza da nossa capacidade e, apesar de tudo, ganhamos pontos. Existem líderes que perseveram e outros que buscam uma formação que os ajudará a viver sua fé em coerência com sua escolha. Ganhamos também porque descobrimos o caminho que liga fé e vida, religião e política. Enfim, ganhamos uma educação de base madura que criou raízes e o espírito da democracia e a luta pela terra cresceram muito.” [2]

O que são As CEBS, hoje? Não acompanho atualmente o andamento das CEBS. Nas minhas atuais andanças, encontro cristãos e cristãs, adeptos de uma prática religiosa espetacular e emotiva e encontro também pessoas sensíveis à situação de pobreza e de marginalização vivida pela maioria do povo. Nestes, sinto que são comprometidos com a causa da transformação e com a elaboração de uma nova ordem sócio-política, encontrando no Evangelho sua fonte de inspiração. Engajam-se nas “políticas públicas”. É o Evangelho que se faz presente nas dimensões do temporal.

3. Desafios

Eu não poderia terminar esta conferência sem lançar alguns desafios para as Igrejas, a começar para a minha, a nossa, a Igreja católica.

3.1 A fé cristã desafia o exercício do PODER

“Quem de vocês quiser ser grande, deve tornar-se o servidor de vocês”, dizia Jesus.

O poder só pode ser exercido para o serviço do Bem Comum, pois o verdadeiro poder reside na dignidade da pessoa humana. Ele não se exerce por imposição, arrogância, egoísmo e ambição, mas pela gratuidade do amor. Tal exercício do poder hoje, supõe uma articulação eficiente com a sociedade civil para continuar a construir o Estado democrático de direito, também sinal do Reino. O poder exercido nas Igrejas é inspirador para construir a democracia ?

3.2 A fé cristã desafia a ordem de nossas prioridades

A fé cristã relembra que o Bem Comum só pode ser conquistado por uma luta constante em favor de um projeto a serviço das pessoas e jamais contra as pessoas. Para que esse projeto fique em acordo com o Evangelho, o engajamento implica uma luta contra a injustiça junto a uma constante busca de amor do inimigo. A Igreja católica tem que rever seriamente suas prioridades. Inspirada pelo Evangelho, influenciará o meio político e ajudará os políticos a descobrir que sua missão, como afirmava Paulo VI, “é o exercício por excelência da caridade”

3.3 A fé cristã desafia a prática quotidiana

A fé cristã dinamiza o processo de mudança, alimentando a Esperança através da paciência histórica sem exigir a eficácia e os resultados imediatos. A precipitação afasta as pessoas e muitas vezes as impede de assumir seu papel de protagonista de sua história. A Esperança não é uma simples renovação de repetir o que já aconteceu, mas é um futuro aberto para um novo começo, superior ao primeiro. Quanta riqueza para um povo conquistador do seu futuro!

A fé cristã lembra que carregamos com os outros uma utopia, um sonho que nenhuma mediação histórica esgotará. Carregamos a Esperança que vem da certeza que, neste poço da vida da história, Jesus Cristo já se banhou. Temos a Esperança que esta construção do Reino será realizada. A nossa Esperança inspira mesmo o mundo de hoje, o meio no qual vivemos?

3.4 A fé cristã desafia as religiões

A fé cristã questiona as religiões. Em nome de qual deus a religião não autorizaria a união dos cristãos e cristãs em torno de reformas profundas de mudança ? Em nome de qual deus a religião justificaria ainda o processo secular de dominação e de conformismo ? Em nome de qual deus a religião substituiria a sua voz profética por favores recebidos ou a receber ? Em nome de qual deus a religião permitiria a submissão para manter prestígio e privilégio ?

3.5 A fé cristã desafia o diálogo

O que dizer a respeito do diálogo ? Nós católicos, cristãos e cristãs não somos os únicos a lutar para construir o Reino. Existe muita gente de diversas religiões e de diversos outros movimentos que até podem não fazer referência a nenhuma inspiração religiosa, mas que tem o espírito da vida. Em razão de nossa fé somos incentivados e impelidos a construir o Reino com todas essas pessoas de crenças e de referências diferentes das nossas. Em razão de nossa fé, somos parceiros. Não temos o privilégio e nem a responsabilidade de construir sozinho o Reino. Somos todos e todas chamados. O espírito que deve nos guiar é aquele do diálogo, numa convergência de forças e numa complementaridade de inspirações. O Espírito sopra onde quer, tanto nas religiões quanto fora delas. O ecumenismo, o diálogo inter-religioso e a capacidade de diálogo com aqueles e aquelas que tem sua inspiração fundada até fora da religião não somente são possíveis e oportunos mas necessários pois ninguém esgota o tamanho da tarefa da construção do Reino no campo social. A prática das CEBS abriu esse caminho, caminho do verdadeiro Evangelho de Jesus Cristo. Como estabelecer em verdade o DIÁLOGO ?

Façamos voto de ver a Igreja católica junto às outras igrejas cristãs tornarem-se instâncias de diálogo com a sociedade, unindo e comungando com todas as expressões do Reino.


Conferência pronunciada no final de 2008.

responsabilite


[1José de Souza Martins, Reforma agrária: o impossível diálogo, São Paulo, Editora da Universidad da São Paulo, 2000, p. 12.

[2Conferência pronunciada na III semana Acadêmica de Ciências Religiosas, Iesma, São Luis, Ma. 31.10.08.

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