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A crise e o êxodo da sociedade salarial: entrevista com André Gorz

Cadernos IHU Idéias

sexta-feira 8 de novembro de 2013, por Dial

2005 - Cadernos IHU Idéias - Por ocasião do 1º de maio de 2004, o boletim IHU On-Line [1], n. 98, teve o seguinte tema de capa: A crise da sociedade do trabalho. Estamos saindo do capitalismo industrial? Sociólogos, economistas e filósofos foram entrevistados sobre este tema. No entanto, faltou um: André Gorz. E ele não estava presente nesta edição porque se recusava a responder a entrevista, seja por telefone, seja por e-mail. Mandamos-lhe as perguntas e eis que ele nos oferece uma síntese do seu pensamento sobre o tema. E assim surge este número dos Cadernos IHU Idéias com a longa e instigadora entrevista de André Gorz.

André Gorz é, lamentavelmente, pouco conhecido no Brasil. Ou, para ser mais preciso, era pouco conhecido o André Gorz das obras mais recentes e, provavelmente, as mais instigadoras e portadoras de uma abordagem nova e questionadora. Estas obras mais recentes começam, agora, a ser traduzidas para o português pelo empenho de Josué Pereira da Silva, professor na Universidade de Campinas – UNICAMP. No entanto, a divulgação do seu pensamento, desde os meados da última década do século XX, é feita de maneira mais insistente pelo Centro de Pesquisa e Apoio aos Trabalhadores – CEPAT, com sede em Curitiba. Nas suas publicações, nos seus cursos e assessorias, o CEPAT tem divulgado amplamente a contribuição teórica de André Gorz para a análise da grande transformação do mundo do trabalho na contemporaneidade. E ele, curiosamente, tem até inspirado alguns movimentos pastorais que atuam no meio popular e que buscam entender as mudanças do mundo do trabalho na sociedade brasileira. Nesse sentido, seria interessante analisar o texto-base da Campanha da Fraternidade de 1999 para perceber até onde chegou o pensamento de André Gorz.

André Gorz nasceu em Viena, no ano de 1923. Ele vive na França, desde 1948. Qualquer pesquisa eletrônica demonstrará o quão internacionalmente ele é conhecido. Autor de 16 livros, dos quais seis foram traduzidos para o português: Estratégia operária e neocapitalismo (Zahar, 1968), O socialismo difícil (Zahar, 1968), Crítica da divisão do trabalho (Martins Fontes, 1980), Adeus ao Proletariado (Forense-Universitária, 1982). E mais recentemente, a Editora Annablume publicou os livros: Metamorfoses do Trabalho. Crítica da razão económica (2003), cuja edição original é de 1988, e Misérias do Presente, Riqueza do Possível (2004). Falta ainda ser traduzido o seu último livro, L’Immatériel. Connaissance, valeur et capital Paris: Galilée, 2003 (O imaterial. Conhecimento, valor e capital).

André Gorz tem inspirado teóricos que se debruçam sobre as mudanças do mundo do trabalho. Entre eles, cabe citar dois livros. Um é o de Françoise Gollain, Une critique du travail. Entre écologie et socialisme. (Paris: la Découverte. 2000). É um grande livro, que não trata sobre a obra de André Gorz, mas que se inspira profundamente no seu pensamento e levanta questões pouco discutidas entre nós, como a relação trabalho e sustentabilidade. Procurei contribuir com esta discussão no paper “Sociedade do trabalho e sociedade sustentável. Algumas aproximações” [2]. O livro de F. Gollain, igualmente, traz uma longa entrevista com André Gorz.

Outro livro que mais sistematicamente analisa a obra de André Gorz é André Gorz. Trabalho e política. (São Paulo: Annablume, 2002), de Josué Pereira da Silva.

Mais recentemente, André Langer, pesquisador do Centro de Pesquisa e Apoio aos Trabalhadores (CEPAT) e doutorando em Ciências Sociais na Universidade Federal do Paraná (UFPR) publicou um paper intitulado “Pelo êxodo da sociedade salarial. A evolução do conceito de trabalho em André Gorz”. O texto é uma síntese bem elaborada da dissertação de mestrado, defendida no PPG em Ciências Sociais Aplicadas da Unisinos, em dezembro de 2003. O texto está publicado nos Cadernos IHU, n. 5, 2004.

Na entrevista aqui publicada, André Gorz discute temas fundamentais hoje para nós. Ele debate o conceito de crescimento econômico, que, muitas vezes, nos faz vibrar e apostar que estamos no caminho certo. Para Gorz, “nada garante que o crescimento do PIB aumenta a disponibilidade de produtos de que a população necessita. Efetivamente, este crescimento responde, em primeiro lugar, à necessidade do capital e não às necessidades da população. Ele cria, muitas vezes, mais pobres e mais pobreza, favorecendo a minoria em detrimento da maioria, deteriorando a qualidade da vida e do ambiente em lugar de melhorá-la”. Ela aprofunda a crise do trabalho. Gorz afirma, com clarividência, que “o trabalho, tal como nós o entendemos, não é uma categoria antropológica. É um conceito inventado no fim do século XVIII”. Assim, sem meias palavras, constata que “o elogio das virtudes e da ética do trabalho, num contexto de desemprego crescente e de precarização do emprego, se inscreve numa estratégia de dominação”.

André Gorz analisa a emergência e o significado social e econômico da assim chamada sociedade da informação e explica a sua aposta na instauração de uma renda de cidadania.

Enfim, este número dos Cadernos IHU Idéias é uma importante contribuição para o debate sobre a grande transformação (Karl Polanyi) do mundo do trabalho na contemporaneidade.

Inácio Neutzling
Diretor do IHU


IHU On-Line – O Brasil, a exemplo de muitos outros países, é bastante atingido pelo problema do desemprego. Uma das soluções mais difundidas e defendidas por governos, policiais e economistas é a retomada do crescimento. Ora, o senhor diz que isso é insuficiente. Por quê?

André Gorz – É preciso, em primeiro lugar, perguntar-nos: De que crescimento temos necessidade? O que nos falta e o que o crescimento deveria trazer-nos? Mas essas perguntas jamais foram levantadas. Os economistas, os governos, os homens de negócios reclamam pelo crescimento em si, sem jamais definir sua finalidade. O conteúdo do crescimento não interessa aos que decidem. O que lhes interessa é o aumento do PIB, ou seja, o aumento da quantidade de dinheiro trocado, a quantidade de mercadorias compradas e vendidas no decurso de um ano, quaisquer que sejam essas mercadorias. Nada garante que o crescimento do PIB aumente a disponibilidade dos produtos de que a população necessita. De fato, esse crescimento responde, em primeiro lugar, a uma necessidade do capital, não às necessidades da população. Ele cria, muitas vezes, mais pobres e mais pobreza, ele, com freqüência, traz rendimento a uma minoria em detrimento da maioria, ele deteriora a qualidade da vida e do meio ambiente, em vez de melhorá-la. Quais são as riquezas e os recursos que faltam com mais freqüência à população? Uma alimentação sadia e equilibrada em primeiro lugar; água potável de boa qualidade; ar puro, luz e espaço; um alojamento saudável e agradável. Mas, a evolução do PIB não mede nada isso. Tomemos um exemplo: uma aldeia faz um poço, e todo o mundo pode tirar a sua água dali. A água é um bem comum, e o poço a produz porque houve um trabalho comum. Ele é a maior fonte de riqueza da comunidade. Mas ele não aumenta o PIB, pois ele não dá lugar a trocas de dinheiro: nada é comprado nem vendido. Mas, se o poço é cavado e dele se apropria um empreendedor privado que exige de cada aldeão que pague a água que ele retira, o PIB aumentará encargos embutidos pelo proprietário. Tomemos ainda o exemplo dos camponeses sem terra. Se forem distribuídas a 100 mil famílias terras improdutivas nas quais eles produzem sua subsistência, o PIB não muda. Ele também não muda se essas famílias repartirem suas tarefas de interesse geral, trocando produtos e serviços numa base mutualista e cooperativa. Contrariamente, se 100 proprietários expulsam 100 mil famílias de suas terras e fazem desenvolver nessas terras culturas comerciais destinadas à exportação, o PIB aumenta no montante dessas exportações e dos salários miseráveis pagos aos agricultores. O PIB não conhece e não mede as riquezas, a não ser que elas tenham a forma de mercadorias. Ele só reconhece como trabalho produtivo o trabalho vendido a uma empresa que dele tira lucro, ou, dito de outra maneira, que pode revender com lucro o produto desse trabalho. Só é produtivo, do ponto de vista do capital, o trabalho que produz mais do que ele custa, o trabalho que produz um excedente – um sobrevalor – suscetível de aumentar o capital. Nos países em que a grande maioria da população é pobre, há poucas pessoas a quem se pode vender com lucro. O desenvolvimento de uma economia de mercado, criadora de empregos, só pode ser iniciada onde existe um poder político, capaz de inscrever essas iniciativas e suas impulsões públicas numa estratégia de exportações e de desenvolvimento. Esse poder existia notadamente no Japão e na Coréia do Sul. É preciso, porém, lembrar também que o desenvolvimento do capitalismo indus-trial destes países teve lugar antes da mundialização neoliberal, antes da revolução microinformática, numa época marcada pelo crescimento sustentável das economias do Norte. Os mercados dos países ricos estavam em expansão, suas economias importavam mão-de-obra estrangeira, e as indústrias japonesas primeiro, as coreanas, em seguida, podiam obter, sem grande dificuldade, um lugar nos mercados europeus e norte-americanos, na condição de bem escolher sua estratégia de industrialização. Ora, após o fim dos anos 1970, as condições mudaram fundamentalmente. As exportações para os países ricos já não podiam mais ser o principal motor do crescimento das economias do Sul, e isso por um conjunto de razões. Em primeiro lugar, os mercados do Norte não estavam mais em forte expansão. Em seguida, a mundialização neoliberal não permitiu mais aos países ditos emergentes protegerem suas indústrias domésticas e sua agricultura contra a concorrência dos países do Norte. Abrindo-se a estes para atrair investimentos estrangeiros, eles caíram numa cilada duvidosa. As importações vindas do Norte arruinaram milhões de pequenas empresas semi-artesanais e criaram indústrias que forneceram, relativamente, poucos empregos e impuseram custos de modernização muito pesados ao país. Com efeito, a era das indústrias de mão-de-obra chega ao seu fim. Os baixos salários dos países do Sul não bastam mais para assegurar-lhes partes de mercado. Praticamente toda a produção industrial exige agora uma forte intensidade de capital, isto é, investimentos pesados, e a amortização, a remuneração e a contínua inversão de capital técnico fixo pesa muito mais onerosamente nos preços de retorno do que os custos de mão-de-obra. Esta mão-de-obra relativamente pouco importante deve ter um nível de produtividade muito elevado, pois é do sobrevalor que ela produz, que depende a rentabilidade do investimento. Enfim, a competitividade das indústrias depende, muito mais fortemente do que no passado, de uma onerosa infra-estrutura logística: vias de comunicação, redes de transporte, energia e telecomunicação, administrações e serviços públicos eficazes, centros de pesquisa e de formação – em suma, do que Marx chamava (em francês) les faux frais [os falsos custos] da economia. “Falsos custos”, cujo financiamento deve provir das retiradas bancárias, baseadas no sobrevalor produzido pela indústria. Se examinarem o “milagre chinês”, constatarão que a China não é exceção nesta ótica. A infra-estrutura logística e os serviços estão atrasados em relação às necessidades da indústria. Gargalos de estrangulamento em matéria de água, de energia e de espaço em particular freiam ou bloqueiam o crescimento, o desemprego aumenta de maneira dramática, pois a industrialização arruinou os ateliês rurais de produção, que faziam viver mais de 100 milhões de trabalhadores, e a concentração agrária constrange outros mais de 100 milhões ao êxodo. A taxa de desemprego nas cidades é estimada pelo BIT em torno de 20% e ela tende a aumentar rapidamente. As produções chinesas não podem, com efeito, igualar em qualidade as produções do Norte, a não ser que o recurso de uma mão-de-obra abundante e um bom mercado dêem mais amplamente lugar à informatização e à automação, mais econômicos em trabalho e em energia, mas de mais forte intensidade de capital. Na China, como na Índia e no Ocidente, o modelo de crescimento pós-fordista enriquece em torno de 20% a população, mas gera em torno de si enclaves pós-industriais hipermodernos, com vastas zonas de miséria e de abandono, onde se desenvolvem a criminalidade organizada e as guerras entre seitas e religiões. O “crescimento” não permite sair da armadilha da modernização neoliberal, salvo para definir parâmetros fundamentalmente diferentes do que deve crescer, ou seja, a menos de se definir uma economia totalmente diversa. A relação do PNB sobre o “desenvolvimento humano” esboçou, em 1996, uma redefinição desse gênero. Acrescentando aos “indicadores” habituais de riqueza o estado de saúde da população, a sua esperança de vida e sua taxa de alfabetização, a qualidade do meio ambiente e o grau de coesão social, um dos países mais pobres do planeta: por seu PIB, o Kerala, se revelou como um dos mais ricos. Vou tentar resumir brevemente as razões desse paradoxo. Numa economia em que as empresas procuram permanente-mente retirar umas das outras certas partes do mercado, cada uma procura reduzir os custos, e reduzindo a quantidade de trabalho que ela emprega, ela procura aumentar a sua produtividade. Suponham que, num dado momento, a produtividade tenha duplicado. É necessária, então, uma metade a menos de trabalho para produzir um mesmo volume de mercadorias. Mas, o “valor” deste mesmo volume tenderá também ele a diminuir pela metade e em taxas de exploração constante, o volume do lucro tenderá a baixar na mesma proporção, pois só o trabalho vivo é capaz de criar valor; e, sobretudo, somente a força de trabalho vivo é capaz de criar um valor maior do que o seu próprio, ou seja, um sobrevalor [3]. É esta a fonte do lucro. Para que o volume do lucro não diminua, será preciso, ou que a empresa, numa produção constante, tenha dobrado as taxas de exploração, ou que ela tenha conseguido, numa taxa de exploração constante, dobrar sua produção. Na prática, ela procura combinar, segundo a conjuntura, a intensificação da exploração e o aumento da produção. O crescimento é, pois, para o capitalismo, uma necessidade sistêmica totalmente independente e indiferente à realidade material do que cresce. Ele responde a uma necessidade do capital. Ele conduz a esse desenvolvimento paradoxal que faz com que, nos países de PIB mais elevado, se viva cada vez pior, consumindo cada vez mais mercadorias.

Na base de um contexto histórico (uma releitura “arendtiana” do “trabalho” junto aos gregos), o senhor chega a distinguir as categorias “emprego” e “trabalho”. Qualéaimportância desta decisão e quais são suas conseqüências?

O trabalho, tal como nós o entendemos, não é uma categoria antropológica. Ele é um conceito inventado no fim do século XVIII. Hannah Arendt lembra que, na Grécia antiga, o trabalho designava as atividades necessárias à vida. Essas atividades eram sem dignidade nem nobreza: eram necessidades. Trabalhar era submeter-se à necessidade, e essa submissão tornava o indivíduo indigno de participar como cidadão da vida pública. O trabalho era reservado aos escravos e às mulheres. Ele era considerado como o contrário da liberdade. Ele era confina-do à esfera privada, doméstica. No século XVIII, começa a tomar corpo uma concepção diferente. O trabalho começa a ser compreendido como uma atividade que transforma e domina a natureza, não como uma atividade que somente se submete a ela. Além disso, a eliminação progressiva das indústrias domésticas – em particular dos tecelões – pelas manufaturas, faz aparecer o trabalho como uma atividade social, socialmente determinado e dividido. O capitalismo manufatureiro exige uma mão-de-obra que lhe forneça trabalho sem qualificação nem qualidade, um trabalho simples, repetitivo que não importa quem deva fazê-lo, aí incluindo as crianças. Assim nasce essa classe social sem qualidade, o proletariado, que fornece um “trabalho sem mais”, um “trabalho sem frases”. Cada proletário é reputado como cambiável por qualquer outro. O trabalho proletário passa para algo totalmente impessoal e indiferenciado. Adam Smith vê nisso a substância comum a todas as mercadorias, uma substância quantificável e mensurável, cuja quantidade cristalizada no produto determina o seu “valor”. Pouco tempo após, Hegel dá ao trabalho em si um sentido mais amplo: ele não é simples dispêndio de energia, mas a atividade pela qual os homens inscrevem o seu espírito na matéria e, sem antes o saber, transformam e produzem o mundo. Entre o trabalho que, no sentido econômico, é uma mercadoria como qualquer outra, cristalizada nas mercadorias, e o trabalho em sentido filosófico, que é exteriorização e objetivação de si, a contradição deve acabar por se tornar evidente. O trabalho, tal como o compreende o capitalismo, é a negação do trabalho tal como o compreende a filosofia, é sua alienação: o capitalismo determina o trabalho como algo estrangeiro (alienus), não podendo ser para e por si mesmo. Marx formulava isso da seguinte maneira: (“Trabalho, salário e capital”, 1849). De uma parte, “o trabalho é a atividade vital própria do trabalhador, a expressão pessoal de sua vida”.

Esta “atividade vital”, contudo, ele a vende a um terceiro para assegurarem-se os meios necessários à sua existência, se bem que sua atividade vital seja apenas o único “meio” de subsistência... Ele não considera o trabalho, enquanto tal, como fazendo parte de sua vida; ele é antes o sacrifício dessa vida. Ele é uma mercadoria que adjudica a um terceiro. Por isso o produto de sua atividade nãoéofim desta atividade.

O fim primário desta atividade é o de “ganhar a vida”, de ganhar um salário. É pelo salário que remunera que o trabalho se inscreve como “atividade social” na tela das trocas sociais de mercadorias que estruturam a sociedade, e que o trabalhador é reconhecido como trabalhador social pertencente a essa sociedade. Mas, o aspecto mais importante, do ponto de vista da sociedade, aquele que justifica que se fale de sociedade capitalista, é ainda outro: o trabalho tratado como uma mercadoria, o emprego, torna “o trabalho estruturalmente homogêneo ao capital”. Da mesma forma como o fim determinante do capitalismo não é o produto que a empresa põe no mercado, mas o lucro que sua venda permitirá realizar, o fim determinante do assalariado não é “aquilo” que ele produz, mas o salário que sua atividade produtiva lhe concede. “Trabalho e capital são fundamentalmente cúmplices além de seu antagonismo, enquanto ganhar dinheiro é seu fim determinante”. Aos olhos do capital, a natureza da produção importa menos que sua rentabilidade; aos olhos do trabalhador, ela importa menos que os empregos que ela cria e os salários que ela distribui. Para um e para o outro, aquilo que é produzido importa pouco, contanto que isso renda. Um e outro estão, conscientemente ou não, a serviço da valorização do capital.

Por isso o movimento operário e o sindicalismo só são anticapitalistas enquanto eles põem em questão, não somente o nível dos salários e as condições de trabalho, mas as finalidades da produção e a forma mercantil do trabalho que a realiza. De que maneira o trabalho se situa na base da crise ecológica?

O trabalho assalariado não é somente para o capital o meio de desenvolver-se, ele é também, por suas modalidades e sua organização, um meio de dominar o trabalhador. Este é despojado de seus meios de trabalho, do fim e do produto de seu trabalho, da possibilidade de determinar sua natureza, sua duração, seu ritmo. O único fim ao seu alcance é o dinheiro do salário e o que ele pode comprar. O trabalho mercantilizado gera o puro consumidor dominado que não produz nada daquilo de que ele precisa. O operário produtor é substituído pelo trabalhador consumidor. Constrangido a vender todo o seu tempo, a vender sua vida, ele enxerga o dinheiro como o que tudo deve comprar simbolicamente. Quando se acrescenta que a duração do trabalho, as condições de alojamento, o ambiente urbano são outros tantos obstáculos à expansão das faculdades individuais e das relações sociais, à possibilidade de desfrutar do tempo de não-trabalho, compreende-se que o trabalhador, reduzido a uma mercadoria, não sonha senão com mercadorias. A dominação que o capital exerce sobre os trabalhadores, constrangendo-os a “comprar” tudo aquilo de que necessitam, fur-ta-se, num primeiro tempo, à sua resistência. Suas compras se dirigem essencialmente a produtos de primeira necessidade e seus consumos são comandados por suas necessidades vitais, enquanto seus salários lhes asseguram estritamente a sobrevivência. Eles só podem resistir à sua exploração por ações e iniciativas coletivas e eles se unem na luta com base “nas necessidades que lhes são comuns”. É a época heróica do sindicalismo, das cooperativas operárias e dos mútuos, dos círculos de cultura operária e da unidade e pertença à classe.

As lutas operárias, neste estágio, são conduzidas principalmente em nome do direito à vida, exigindo um salário “suficiente” para cobrir as necessidades dos trabalhadores e de suas famílias. Esta norma do “suficiente” é tão pregnante, que os operários de profissão param de trabalhar depois que eles ganharam “bastante” para viver segundo seu costume e que os operários pagos por rendimento não podem ser constrangidos a trabalhar dez ou doze horas por dia a não ser por uma diminuição de seu salário-hora. Mas, a partir de 1920, nos Estados Unidos, e de 1948, na Europa ocidental, as necessidades primárias oferecem ao capitalismo um mercado demasiado pequeno para absorver o volume das mercadorias que ele é capaz de produzir. A economia não pode continuar a crescer, os capitais acumulados não podem ser valorizados, e os lucros não podem ser reinvestidos, a não ser que a produção de supérfluos ultrapasse, mais e mais, a produção do necessário. O capitalismo necessita de consumidores cujas compras sejam motivadas, cada vez menos, pelas “necessidades comuns” a todos e, cada vez mais, pelos “desejos individuais diferenciados”. O capitalismo precisa produzir um novo tipo de consumidor, um novo tipo de indivíduo: um indivíduo que, por seus consumos, por suas compras, queira se destacar da norma comum, “distinguir-se” dos outros e afirmar-se “fora do comum”. O interesse econômico dos capitalistas coincide maravilhosamente com o seu interesse político. A individualização e a diferenciação dos consumidores permitem, ao mesmo tempo, ampliar os mercados da indústria e minar a coesão e a consciência de classe dos trabalhadores. Elas devem induzir neles comportamentos e aspirações próximos daqueles da “classe média”. Um dos primeiros a investigar metodicamente essa transformação da classe operária foi Henry Ford. Em suas usinas, as cadeias de montagem exigiam um trabalho repetitivo, embrutecedor, sem dignidade, mas os operários desqualificados recebiam salários invejáveis. O que eles perdiam no plano da dignidade profissional, eles ganhavam no plano do consumo, que, por necessidade, era substituído, ao menos em parte, pelo “consumo compensador”. O período dito fordista, que durou, com altos e baixos, de 1948 a 1973, conseguiu combinar a progressão dos salários, das prestações sociais, das despesas públicas e, sobretudo, da produção e do emprego. O quase pleno emprego baseava-se num crescimento da produção mais elevado que o crescimento da produtividade do trabalho, isto é, superior a 4% ao ano. Na medida em que ela trazia a segurança do emprego e a segurança social, a expansão da economia estava no interesse imediato da classe operária. Com exceção de uma esquerda sindical minoritária, o movimento operário não criticava a natureza e a orientação desta expansão, mas reclamava antes sua aceleração. Ora, a expansão sustentada da produção implica, num regime capitalista, uma aceleração da rotação e da acumulação do capital. O capital fixo (investido nas instalações materiais) deve ser rentabilizado e amortizado rapidamente, a fim de que os lucros possam ser reinvestidos na ampliação dos meios de produção. Sob o ângulo ecológico, a aceleração da rotação do capital conduz à exclusão de tudo o que diminui de imediato o lucro. A expansão continuada da produção industrial envolve, pois, uma pilhagem acelerada dos recursos naturais. A necessidade de expansão ilimitada do capital o conduz a procurar abolir a natureza e os recursos naturais, para substituí-los por produtos fabricados, vendidos com lucro. As sementes geneticamente modificadas que empresas gigantes estão a fim de impor ao mundo inteiro, oferecem um exemplo eloqüente a esse respeito. Elas visam a abolir tanto a reprodução natural de certas espécies vegetais como essas próprias espécies, a agricultura e as culturas alimentícias, em suma, a possibilidade, para as pessoas produzirem elas mesmas os seus alimentos. O “trabalho mercantilizado”, isto é, os trabalhadores e suas organizações não são co-responsáveis por esta pilhagem e esta destruição, a não ser na medida em que eles defendem o emprego a qualquer preço no contexto existente e combatem, com este fim, tudo o que diminui de imediato o crescimento econômico e a rentabilidade financeira dos investimentos. O que Marx escrevia, há 140 anos, no primeiro livro de O Capital, é de uma espantosa atualidade:

Na agricultura moderna, bem como na indústria das cidades, o crescimento da produtividade e o rendimento superior do trabalho são comprados ao preço da destruição e do estancamento da força de trabalho. Além disso, cada progresso da agricultura capitalista é um progresso não somente da arte de explorar o trabalhador, mas também na arte de despojar o solo; cada progresso na arte de aumentar sua fertilidade por um tempo, um progresso na ruína de suas fontes duráveis de fertilidade. Quanto mais um país, os Estados Uni-dos da América do Norte, por exemplo, se desenvolve com base na grande indústria, mais esse processo de destruição se cumpre rapidamente. A produção capitalista não desenvolve, pois, a técnica e a combinação do processo de produção social, senão esgotando ao mesmo tempo as duas fontes de onde jorra toda a riqueza: a terra e o trabalhador.

O senhor demonstrou que, em nossa sociedade, o grande problema não é mais o da produção, mas o da distribuição. De onde vem esta mudança e quais são suas propostas para fazer face a este novo desafio? A independência entre o trabalho e a remuneração, idéia que o senhor defende, poderia trazer essa mudança?

A resposta é muito simples: quando a sociedade produz mais riqueza com cada vez menos trabalho, como poderá ela fazer depender o ganho de cada um da quantidade de trabalho que ele produz? Esta questão tornou-se mais lancinante após a passagem ao pós-fordismo. A “revolução informacional”, que, de início, se chamou de “revolução microeletrônica”, permitiu gigantescas economias de tempo de trabalho na produção material, na gestão, nas comunicações, no comércio atacadista, no conjunto das atividades de escritório. Num primeiro tempo (de 1975 a 1985), as esquerdas sindical e política tentaram impor políticas de redistribuição do trabalho e dos rendimentos segundo a divisa “Trabalhar menos para trabalharem todos, e viver melhor”. Elas fracassaram e é preciso compreender o motivo. Com a informatização e a automação, o trabalho deixou de ser a principal força produtiva, e os salários deixaram de ser o principal custo de produção. A composição orgânica do capital (isto é, a relação entre capital fixo e capital de giro) aumentou rapidamente. O capital se tornou o fator de produção preponderante. A remuneração, a reprodução, a inovação técnica contínua do capital fixo material requerem meios financeiros muito superiores ao custo do trabalho. Este último é, com freqüência inferior, atualmente, a 15% do custo total. A divisão entre capital e trabalho do “valor” produzido pelas empresas pende mais e mais forte-mente em favor do primeiro. Este está cada vez menos inclinado a ceder às exigências das organizações obreiras ou a negociar compromissos com elas. Seu primeiro cuidado é que sua preponderância no seio do processo de produção lhe permite impor sua lei. Ele procura, numa palavra, o meio de se livrar das legislações sociais e das convenções coletivas, consideradas como coleiras insuportáveis no contexto em que a “competitividade” nos mercados mundiais é o primeiro imperativo. A mundialização neoliberal exige que as leis sociais sejam abolidas pelas leis do mercado, pelas quais ninguém pode ser tido como responsável. Tal era, aliás, o fim tácito para o qual a mundialização tinha sido promovida. Ela devia permitir ao capital descartar o peso julgado excessivo que tinham adquirido as organizações operárias durante o período fordista. Os assalariados deviam ser constrangidos a escolher entre a deterioração de suas condições de trabalho e o desemprego. Na realidade, a mundialização gerou o desemprego e a deterioração das condições de trabalho simultaneamente. O emprego estável, de tempo e salário integral, tornou-se um privilégio, reservado, nas 100 maiores empresas norte-americanas, a 10% do pessoal. O trabalho precário, descontínuo, em tempo parcial e em horários “flexíveis,” tende a tornar-se a regra. A “sociedade salarial” entrou, assim, em crise. O emprego tinha aí funções múltiplas. Ele era o principal meio de repartição da riqueza socialmente produzida; ele dava acesso à cidadania social, ou seja, às diversas prestações do Estado previdenciário, prestações financeiras para a redistribuição parcial das remunerações do trabalho e do capital; ele assegurava um certo tipo de integração e de pertença a uma sociedade fundada sobre o trabalho e a mercadoria; ele devia, por princípio, ser acessível a to-dos. O “direito ao trabalho” devia ser inscrito na maioria das constituições como um direito político e de cidadania. É, então, toda a sociedade que se desintegra com a precarização e a “flexibilização” do emprego, com o desmantelamento do Estado previdenciário, sem que nenhuma outra sociedade, nem nenhuma outra perspectiva tomem ainda o lugar da ordem que desmorona. Ao contrário, os representantes do capital continuam, com uma cruel hipocrisia, a elogiar as virtudes desse mesmo emprego que eles abolem maciçamente, acusando os trabalhadores de custar demasiado caro e os desempregados de serem preguiçosos e incapazes, responsáveis eles mesmos por seu desemprego. O patronato exige o aumento da duração semanal e anual do trabalho, pretendendo que “para vencer o desemprego é preciso trabalhar mais”, ganhar menos e retardar a idade de aposentadoria. Mas, ao mesmo tempo, grandes empresas licenciam os assalariados com 50 anos de idade ou mais, a fim de “rejuvenescer seu pessoal”. O elogio das virtudes e da ética do trabalho num contexto de desemprego crescente e de precarização do emprego inscreve-se numa estratégia de dominação: é preciso incitar os trabalhadores a disputarem os empregos muito raros, a aceitá-los não importa sob quais condições, a considerá-los como intrinsecamente desejáveis, e impedir que trabalhadores e desempregados se unam para exigir uma outra partilha do trabalho e da riqueza socialmente produzida. Em toda a parte, se invocam as virtudes do neoliberalismo norte-americano que, ampliando a duração do trabalho, diminuindo os salários, reduzindo os impostos dos ricos e das empresas, privatizando os serviços públicos e amputando drasticamente as indenizações dos desempregados, obteve um crescimento econômico mais forte do que a maioria das outras nações do Norte e conseguiu criar um maior número de empregos. Não era essa a prova de que a contração do volume dos salários distribuídos, o empobrecimento da grande massa dos cidadãos, o enriquecimento espetacular dos mais ricos [4] não eram obstáculos ao crescimento da economia, mas o contrário?

Não. O segredo do crescimento que conheceu a economia dos Estados Unidos no decurso dos anos de 1990, marcados por uma quase-estagnação da economia européia, reside numa política que nenhum outro país pode permitir-se e que, cedo ou tarde, terá conseqüências duvidosas. Como a dos outros países do Norte, a economia US sofre de insuficiência da demanda solvível. Mas ela é a única capaz de atenuar esta insuficiência, deixando acumularem-se as dívidas, isto é, praticamente, criando moeda. Para impedir que a demanda solvível não diminua e que a economia não entre em recessão, o Banco Central encoraja as famílias a se endividarem junto a seu banco e a consumirem o que eles esperam ganhar no futuro. É o endividamento crescente das famílias de “classe média” que tem sido e que permanece sendo o principal motor do crescimento. No final dos anos 1990, cada família devia em média tanto dinheiro quanto ela esperava ganhar nos 15 meses vindouros. As famílias despendiam, em 1999, 350 bilhões de dólares a mais do que ganhavam, e este consumo, que não era ligado a nenhum trabalho produtivo, se refletia num déficit de 400 e depois de 500 bilhões de dólares por ano da balança contábil. Tudo se passava como se os Estados Uni-dos tomassem emprestado no exterior o que eles emprestavam no interior: eles financiavam uma dívida por outras dívidas. Comprando no exterior por quinhentos bilhões a mais do que eles vendem, os Estados Unidos irrigam o mundo de liquidez. Praticamente todos os países querem vender aos americanos mais do que deles compram pelo “privilégio” de trabalhar para os consumidores americanos. Longe de sonharem em reclamar aos Estados Unidos a apuração de suas dívidas, os credores dos Estados Unidos fazem o contrário: eles devolvem aos Estados Unidos os dólares que estes perdem, comprando bônus do Tesouro US e ações em Wall Street. Este espantoso estado de coisas só pode, todavia, durar o tempo em que a Bolsa de Wall Street continue a subir e que o dólar não baixe em relação às outras grandes moedas. Quando Wall Street se puser a baixar continuamente, e o dólar enfraquecer, o caráter fictício dos créditos em dólares se tornará manifesto, e o sistema bancário mundial ameaçará desmoronar como um castelo de cartas. O capitalismo “caminha na beira do precipício” [5] Produzir e produzir mais não é, pois, um problema. O problema é vender o que é produzido a compradores capazes de pagá-lo. O problema é a distribuição de uma produção realizada com menos trabalho e que distribui menos meios de pagamento, de maneira irregular e não igualitária. O problema é o fosso que não cessa de se cavar entre a capacidade de produzir e a capacidade de vender com lucro, entre a “riqueza” produtível e a forma mercantil, a forma “valor” que a riqueza deve obrigatoriamente revestir para poder ser produzida no quadro do sistema econômico em vigor. A solução do problema não pode ser encontrada nem na simples criação de meios de pagamento suplementares, nem na criação de uma quantidade suficiente de empregos para ocupar e remunerar toda a população desejosa de “trabalhar”, ou seja, em escala mundial, perto de um terço da população potencialmente ativa do Planeta. Eu mostrarei agora que a solução que consiste em aumentar o poder de compra da população, criando meios de pagamentos suplementares, repartidos por todos, não é aplicável no quadro do sistema existente. Mas, previamente, é preciso mostrar que a criação de empregos suplementares em quantidade quase ilimitada, tal como ela é praticada nos Estados Unidos, em particular, não cria praticamente riqueza suplementar na escala de uma sociedade, embora ela procure um retorno, geralmente frágil e irregular, de um grande número de ativos. Todo emprego, com efeito, não é “produtivo” no sentido de que, numa economia capitalista, só é “produtivo” um trabalho que valoriza (isto é, aumenta) um capital, porque este que o fornece só consome a totalidade do valor que ele produz. Ora, as famosas “jazidas de empregos”, graças às quais os governos esperam poder suprimir o desemprego, são, na maioria, empregos improdutivos, no sentido que eu acabo de mencionar. É o caso, em particular, dos serviços a terceiros que ocupam 55% da população ativa dos Estados Unidos. Segundo Edward Luttwak [6],

esses 55% da população ativa trabalham como vendedores/vendedoras, servidores/servidoras, mulheres e homens do lar, empregados/empregadas domésticos, jardineiros, baby sitters e vigias de imóveis, e a metade dentre eles ocupam empregos precários de baixo salário, mais de um quarto são working poor [pobres trabalhadores], cuja remuneração é inferior ao nível de pobreza, mesmo quando eles ocupam dois ou três empregos.

Tudo se passa como se os 20% mais ricos tivessem cada um três pobres trabalhadores a seu serviço. Estes empregos de serviços não fazem aumentar a quantidade de meios de pagamento em circulação: eles não criam valor, eles consomem o valor criado de outra forma. Sua remuneração provém da remuneração que seus clientes obtiveram pelo trabalho produtivo, sendo um “ganho secundário”, uma redistribuição secundária de uma parte das remunerações primárias. Este caráter não criador de valor dos serviços a terceiros – eu só falo de seu valor em sentido econômico, não de seu valor de uso ou de satisfação – foi perfeitamente resumido por um grande patrão americano. Discutindo a tese de certos neoliberais, que pretendiam que se iria manter o crescimento, obrigando os desempregados a ganhar sua vida vendendo flores nas esquinas das ruas, engraxando sapatos dos transeuntes ou vendendo hambúrgueres, ele concluiu: “Vocês não podem fazer girar uma economia, vendendo hambúrgueres uns aos outros”. Com mais freqüência, os empregos de serviço transformam somente em prestações remuneradas serviços que as pessoas poderiam trocar sem serem pagas, ou atividades que elas próprias poderiam assumir. A transformação em empregos de tais atividades, com efeito, não economiza tempo de trabalho, não faz ganhar tempo em escala social: ela apenas redistribui o tempo. Uns compram tempo que outros aceitam vender a baixo preço, mas não há, no conjunto, economia de tempo. O caráter improdutivo dos serviços comprados e vendidos se reflete neste plano. Não há praticamente limite à extensão desse gênero de trocas mercantis. Em World Philosophie (Paris, 2000), Pierre Lévy visa a transformar em business todas as trocas sociais e todas as relações interpessoais: “sexualidade, casamento, procriação, saúde, beleza, identidade, conhecimentos, relações, idéias..., nós estaremos constantemente ocupados em fazer toda espécie de negócios... A pessoa torna-se uma empresa. Não há mais família nem nação que se mantenha.” As pessoas passam, então, seu tempo a se venderem umas às outras. Elas são todas não apenas mercadores, mas mercadorias em busca de compradores. É preciso ressituar a reivindicação de um retorno de existência nesse contexto. Sua finalidade não é a de perpetuar a sociedade do dinheiro e da mercadoria, nem de perpetuar o modelo de consumo dominante nos países ditos desenvolvidos. Sua finalidade é, ao contrário, subtrair os desempregados e precários à obrigação de se venderem; de “liberar a atividade da ditadura do emprego” (to liberate work form the tyranny of the job), segundo a fórmula de Frithjof Bergmann. Como o diz um texto de uma das associações de desempregados mais influentes na França, o retorno de existência deve “dar-nos os meios de desenvolver atividades infinitamente mais enriquecedoras do que aquelas às quais se quer constranger-nos”, atividades que, expansivas para os indivíduos, criem também riquezas intrínsecas que uma empresa não pode fabricar, que nenhum salário pode comprar, de que nenhuma moeda pode mensurar o valor. Essas riquezas intrínsecas são, por exemplo, a qualidade do meio de vida, a qualidade da educação, os laços de solidariedade, as redes de ajuda e de assistência mútua, a extensão dos saberes comuns e dos conhecimentos práticos, a cultura que se reflete e se desenvolve nas interações da vida cotidiana – tudo coisas que não podem tomar a forma de mercadoria, que não são cambiáveis contra nenhum outro bem, que não têm preço, mas cada uma tem um valor intrínseco. É delas que depende a qualidade e o sentido da vida, a qualidade de uma sociedade e de uma civilização. Elas não podem ser produzidas sob comando. Elas não podem sr produzidas senão pelo movimento mesmo da vida e das relações cotidianas. Sua produção exige tempo não mensurado. O retorno social incondicional é reivindicado para tornar acessíveis a todos essas atividades livres não prescritas, das quais de-pende a expansão das faculdades e das relações humanas. A educação, a cultura, a prática das artes, dos esportes, dos jogos, das relações afetivas, não devem “servir a qualquer coisa”. São atividades pelas quais as pessoas se tornam plenamente humanas e encaram sua humanidade como o sentido e o fim absoluto de sua existência. É somente “acima do mercado” que elas também aumentam a produtividade do trabalho: elas lhe permitem tornar-se cada vez mais inteligente, inventivo, eficaz, mestre de sua organização coletiva e de suas conseqüências externas, e é assim que economiza tempo e recursos. Ele terá este resultado na condição de não ser submetido previamente a um encadeamento de tarefas predeterminadas, de não ser o “meio” de atingir o aumento da produtividade. Pelo contrário, a atividade produtiva deve ser um dos “meios” da expansão humana, e não o inverso. É assim que ela será a maior economia de recursos, de energia e de tempo. Esta concepção é evidentemente contrária à concepção dominante da racionalidade econômica. Ela é vivamente combatida pelos representantes do capital. Segundo eles, as pessoas são, antes de tudo, meios de produção e sua educação, sua formação, sua cultura devem ser úteis à sua função produtiva. O ensino e a cultura devem “servir a qualquer coisa”¸ fornecer à economia forças de trabalho adaptadas a tarefas predeterminadas. Os dirigentes de grandes empresas sabem perfeitamente que esta concepção instrumental da cultura se tornou indefensável e eles o reconhecem, por vezes, dizendo que o que conta entre as pessoas de que eles necessitam é a criatividade, a imaginação, a inteligência, a capacidade de desenvolver continuamente seus conhecimentos. O tempo passado no trabalho não mede mais sua contribuição à produção. Este tempo é, muitas vezes, menor que o tempo que eles passam fora de seu trabalho, entretendo suas capacidades cognitivas, ou imaginativas, com atividades que “não servem para nada”, que são a expansão humana e que só o produzem plenamente na condição de não ser submetido a imperativos estranhos. Tal é a condição que atravessa hoje um capitalismo que reconhece no “conhecimento”, no desenvolvimento das capacidades humanas, a força produtiva decisiva e que não pode dispor desta força a não ser na condição de não servi-la. O direito dos homens de existir independentemente deste “trabalho” de que a economia tem cada vez menos precisão é agora a condição de que depende o desenvolvimento de uma economia do conhecimento (knoledge economy) que se agarra de fato aos fundamentos da economia capitalista. A reivindicação de um retorno de existência desvinculado do tempo de trabalho e do próprio trabalho não é, pois, uma utopia. Pelo contrário, ela se torna atual, porque o “trabalho”, tal como ele é entendido desde séculos, não é mais a força produtiva principal e que a força produtiva principal, o saber vivo, não pode ser mensurado com os padrões habituais da economia, nem remunerado segundo o número de horas durante as quais cada um o põe em obra. Dito isso, eu não penso que o retorno de existência possa ser introduzido gradualmente e pacificamente por uma reforma decidida “de cima”. Como escrevia Antonella Corsani, “ele não deve, sobretudo, inscrever-se numa lógica redistributiva, mas numa lógica subversiva de superação radical da riqueza, fundada sobre o capital e o trabalho”. A idéia por si só do retorno de existência marca uma ruptura. Ela obriga a ver as coisas de outra maneira e, sobretudo, a ver a importância das riquezas que não podem tomar a forma de valor, ou seja, a forma do dinheiro e da mercadoria. O retorno de existência, quando ele for introduzido, será uma moeda diferente da que nós utilizamos hoje. Ela não terá as mesmas funções. Ela não poderá servir a fins de dominação, de poder. Ela será criada “em baixo” e carregada por uma onda da base, simultaneamente a redes de cooperativas enormes de autoprodução (de high-tech self-providing, segundo a fórmula de Bergmann), em resposta a uma conjunção de diferentes formas de crise que nós sentimos surgir: crise climática, crise ecológica, crise de energia, crise monetária após o desmoronamento do sistema de crédito. Nós todos somos argentinos em potencial. A saída depende amplamente dos grupos e dos movimentos, dos quais as práticas esboçam as possibilidades de um outro mundo e o preparam.

Se nós nos dirigimos para uma “economia de conhecimentos”, como ocorre que certos bens materiais continuam a ter tanta importância, como é o caso, por exemplo, do petróleo? E o que se torna a agricultura, mais particularmente no que toca aos subsídios? Em seu último libro O imaterial, o senhor aborda o tema da economia do imaterial. Em sua opinião, esta significa a crise do capitalismo? Por quê?

As expressões “economia do conhecimento”, “sociedade do conhecimento” (knowledge society) circulam, há 35 anos, na literatura anglo-saxônica. Elas significam, de uma parte, como já o sublinhei, que o trabalho, praticamente todo o trabalho em todos os tipos de produção, exige do trabalhador capacidades imaginativas, comunicacionais, cognitivas, etc., em suma, a contribuição de um saber vivo que ele deve extrair de si mesmo. O trabalho não é mais mensurável apenas pelo tempo que nele se passa. A implicação pessoal que ele exige faz com que, praticamente, não haja mais um padrão de medida universal para avaliá-lo. Seu componente imaterial se reveste de uma importância maior do que o dispêndio de energia física. Vale o mesmo para o valor mercantil dos produtos. Sua substância material exige cada vez menos trabalho, seu custo é frágil e seu preço tende, pois, a baixar. Para conter essa tendência à baixa, as empresas transformam os produtos materiais em vetores de conteúdos imateriais, simbólicos, afetivos, estéticos. Não é mais sua utilidade prática que conta, mas a desejabilidade subjetiva que deve dar-lhe a identidade, o prestígio, a personalidade que eles conferem a seu proprietário ou a qualidade dos conhecimentos dos quais se julga serem o resultado. Temos, então, uma indústria muito importante, a do marketing e da publicidade, que só produz símbolos, imagens, mensagens, estilos, modas, ou seja, as dimensões imateriais que farão vender as mercadorias materiais a um preço elevado e não cessarão de inovar para tirar de moda o que existe e lançar novidades. Esta é também uma maneira de combater a abundância que faz baixar os precos e produzir a raridade – o novo é sempre raro, no começo – que os fará aumentar. Mesmo os produtos de uso cotidiano e os alimentos são comercializados segundo este método, por exemplo, os produtos de laticínios ou os de limpeza. O logotipo das diferentes empresas destina-se a conferir aos seus produtos uma especificidade que os torna incomparáveis, não cambiáveis por outros. Assim como a importância de seu componente imaterial tornava o trabalho não mensurável, segundo um padrão universal, a importância do componente imaterial das mercadorias os subtrai, temporariamente, pelo menos, à lei do mercado, dotando-as de qualidades simbólicas que escapam à comparação e à medida. Se examinarmos as produções que mais se desenvolveram nos últimos vinte ou trinta anos, constataremos a dominação das mercadorias imateriais: notadamente a música da imagem (fotografia, videocâmara, televisores, magnetoscópios e depois DVD) a comunicação (telefone móvel, Internet). O material é apenas o vetor do imaterial, ele só tem valor de uso graças a este último. Foi principalmente o consumo imaterial que permitiu à economia capitalista continuar a funcionar e a crescer. Nós temos, pois, uma situação em que as três categorias fundamentais da economia política: o trabalho, o valor e o capital não são mais mensuráveis segundo um padrão comum. Há uns trin-ta anos, o capitalismo quis superar a crise do regime fordista, lançando-se numa economia do conhecimento, ou seja, capitalizando o conhecimento e o saber vivo. Fazendo isso, ele criou para si problemas novos que não têm solução no quadro do sistema, pois, transformar o saber vivo em “capital humano” não é um negócio fácil. As empresas são incapazes de produzir e de acumular “capital humano” e incapazes, também, de assegurar duradouramente seu controle. A inteligência viva, tornada força produtiva principal, ameaça sempre escapar à sua empresa. Os conhecimentos formalizados e formalizáveis, por outra parte, traduzíveis em logicismos, são reproduzíveis em quantidades ilimitadas por um custo negligenciável. São, pois, bens potencialmente abundantes e esta abundância fará tender o valor de troca para zero. Logo, uma verdadeira economia do conhecimento seria uma economia da gratuidade e da partilha que trataria os conhecimentos como um bem comum da humanidade. Para capitalizar e valorizar os conhecimentos, a empresa capitalista deve privatizá-los, tornar raros, por apropriação privada e patenteação, o que é potencialmente abundante e gratuito. E esta privatização e esta rarefação têm um custo muito elevado, uma vez que é preciso proteger o monopólio temporário que a empresa adquire contra conhecimentos equivalentes e novos, contra as imitações ou reinvenções, aferrolhando o mercado contra eventuais concorrentes por campanhas de marketing e por inovações que vencem os eventuais concorrentes pela rapidez. Os conhecimentos não são mercadorias como as outras, e seu valor comercial, monetário, é sempre artificial. Tratá-los como “capital imaterial” e cotá-los na Bolsa, é assinalar um valor fictício ao que não tem valor mensurável. O que vale, por exemplo, o capital da Coca Cola, da Nike ou da McDonald’s, todas empresas que não possuem capital material, mas somente know how, organização comercial e um nome de marca reputado? O que vale mesmo a Microsoft? A resposta depende essencialmente da estimativa da Bolsa sobre as rendas de monopólio que essas empresas esperam obter. Diz-se que o desmoronamento (a falência) do Nasdaq em 2001 empobreceu o mundo em 4000 bilhões de dólares. Mas ele teve apenas uma existência fictícia. Se o desmoronamento dos “valores imateriais” demonstrou alguma coisa, é essencialmente a dificuldade intrínseca que há em querer fazer funcionar o capital imaterial como um capital e a economia do conhecimento como o capitalismo. A ausência de um padrão de medida comum para o conhecimento, o trabalho imaterial e o capital, a queda do valor dos produtos materiais e o aumento artificial do valor de troca do imaterial desqualificam os instrumentos de medida macroeconômicos. A criação de riqueza não se deixa mais mensurar em termos monetários. Os fundamentos da economia política desmoronam. É nesse sentido que a economia do conhecimento é a crise do capitalismo. Não é por acaso que se sucedem, há alguns anos, as obras filosóficas e econômicas que insistem na necessidade de redefinir a riqueza. Uma outra economia se esboça no coração do capitalismo, que inverte a relação entre produção de riquezas mercantis e produção de riqueza humana.


André Gorz, “A crise e o êxodo da sociedade salarial”, Cadernos IHU Idéias, ano 3, nº31, 2005.

http://www.ihu.unisinos.br/images/stories/cadernos/ideias/031cadernosihuideias.pdf

responsabilite


[1O boletim IHU On-Line é uma publicação semanal do Instituto Humanitas Unisinos – IHU – que está disponível na página www.ihu.unisinos.br, a partir das 14h da segunda-feira e cuja edição impressa circula no câmpus da Unisinos, a partir das 8h das terças-feiras.

[2NEUTZLING, Inácio, “Sociedade do trabalho e sociedade sustentável. Algumas aproximações”. In: OSOWSKI, Cecília; MELLO, José Luiz Bica de (org.). O Ensino Social da Igreja e a globalização. São Leopoldo: Unisinos, 2002, p. 37-82.

[3O sobrevalor (chamado outrora “mais valia”, originado do inglês surplus value), é o valor da produção que um trabalhador realiza além de suas próprias necessidades e das de sua família. Ele é um excedente econômico (economic surplus, segundo a terminologia de Paul Baran). A proporção de sobrevalor, no total do valor produzido por um trabalhador, é a taxa de sobrevalor (taxa de mais valia), que mede a taxa de exploração.

[4No período de 1979 a 1994, 80% dos assalariados sofreram, nos Estados Uni-dos, diminuições de sua remuneração, enquanto 70% do acréscimo de riqueza produzida, graças ao crescimento durante este mesmo período, foram monopolizados por 5% dos americanos mais ricos.

[5Cf. BRENNER, Robert. New Boom or New Bubble? In: New Left Review, n.25, jan.-fev. 2004.

[6Turbo Capitalism. New York, 1999.

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